terça-feira, 31 de maio de 2011

Alerta urgente - Grupo Tortura Nunca Mais

O Grupo Tortura Nunca Mais/RJ informa que no dia 18 de maio de 2011 foi realizada uma operação violenta da Polícia Militar no loteamento de Nova Esperança, distrito de Barra do Riacho, município de Aracruz/ES, resultando na expulsão de 1,6 mil pessoas, dentre elas aproximadamente 400 crianças, do loteamento Nova Esperança. O loteamento estava situado em área da Prefeitura de Aracruz que obteve há 6 meses um mandado judicial de reintegração de posse. Porém, de acordo com os moradores, eles não receberam nenhuma ação de despejo e nunca foram procurados pela administração municipal para negociar.

A ação violenta que contou com o Batalhão de Missões Especiais da Polícia Militar (BME), o Grupo de Apoio Operacional (GAO) e a Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas (ROTAM), envolveu 400 policiais militares. Foram utilizadas pelos policiais bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo, balas de borracha, cavalaria e cães treinados. Há denúncias de que havia atiradores de elite da Polícia posicionados em locais estratégicos mirando as pessoas com armas de fogo letal. Helicópteros do BME deram apoio à ação policial, jogando bombas de efeito moral sobre o loteamento e atingindo moradores.

Foram demolidas 313 casas de alvenaria e no momento da ação de reintegração de posse havia crianças, idosos, mulheres. O presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos/ES, Sr Gilmar Ferreira, que se dirigiu ao local tentando um diálogo foi atingido por balas de borracha. Militantes de movimentos sociais, representantes de entidades de Direitos Humanos e jornalistas foram agredidos e impedidos de acompanhar a operação. Os moradores foram impedidos de entrar em suas casas para retirar documentos, remédios e objetos pessoais. Após a ação de desocupação efetuada pela polícia, tratores entraram no loteamento e destruíram as casas.

Uma parte dos moradores do loteamento Nova Esperança, cerca de 400 pessoas, está vivendo desde o dia 18 de maio de 2011 em uma quadra esportiva, vivendo de forma precária.

A violenta ação por partes de agentes do Estado e do município deixou várias pessoas feridas. O relatório do Conselho Estadual de Direitos Humanos aponta que os policiais estavam fortemente armados e com o auxilio de um helicóptero e atiradores de elite posicionados em pontos estratégicos, no sentido de intimidar e reprimir qualquer esboço de reação.

Entidades e movimentos sociais já publicaram várias notas de repúdio. Neste momento, o Grupo Tortura Nunca Mais/RJ une-se a essas vozes e reivindicam:

1) Mudança na Política de Segurança Pública e discussão quanto à existência do BME (Batalhão de Missões Especiais);

2) ações específicas e concretas com relação aos moradores alojados na quadra de esportes e
em residências de familiares envolvendo saúde, alimentação, moradia, conselho tutelar, assistência jurídica;

3)responsabilização das violações dos Direitos Humanos cometidas na ação efetuada;

4)encaminhamentos com relação à questão fundiária em Aracruz/ES – qual a política do governo do Espírito Santo?

Vídeo da ação policial pode ser vista no link abaixo
http://www.youtube.com/watch?v=DQ7gM8rpzxU&feature=share

Solicitamos que este Alerta seja o mais amplamente divulgado e que notas e mensagens fortalecendo as quatro reivindicações aqui listadas, sejam enviadas para:

Ministério da Justiça
Exmo. Ministro Dr. José Eduardo Cardozo
Ministério da Justiça – Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – Brasília –
700064-900
Fax: (61) 2025.9556

Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República
Exma. Ministra Sra. Maria do Rosário Nunes
e-mail: direitoshumanos@sdh.gov.br
Fax: (61) 2025.9414

Governador do Espírito Santo Sr. Renato Casagrande
Palácio Anchieta
Praça João Clímaco, s/nº - Cidade Alta – Centro – Vitória – ES
e-mail: governador@es.gov.br

Vice-Governador do Espírito Santo Sr. Givaldo Vieira
Palácio da Fonte Grande - Rua Sete de Setembro, nº 362, 8º andar – Centro -Vitória - ES
Telefone: (27) 3636.1434 / (21) 3636.1441 / (27) 3636.1435
Fax: (27) 3636.1409
E-mail: vicegovernador@vice.es.gov.br
Chefe de Gabinete: Márcia Vago marcia.vago@vice.es.gov.br
Secretária Agenda: Andrea Rios andrea.rios@vice.es.gov.br

Secretário de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo Sr. Henrique Herkenhoff
Av. Marechal Mascarenhas de Moraes, 2355 – Bento Ferreira – Vitória – ES
CEP.: 29050-624
e-mail: gabinete@sesp.es.gov.br
claudio.figeiredo@sesp.gov.br (Assessoria de Imprensa)
luiz.machado@sesp.es.gov.br (Integração Comunitária)

Secretário de Assistência Social, Trabalho e Direitos Humanos Sr. Rodrigo Coelho
Av. Nossa Senhora dos Navegantes – Ed. Tucumã, nº 225
Enseada do Suá – Vitória – ES – 29052-157

Subsecretario de Estado de Direitos Humanos Sr. Perly Cipriano
Av. Nossa Senhora dos Navegantes – Ed. Tucumã, nº 225
Enseada do Suá – Vitória – ES – 29052-157

Ministério Público do Estado do ES Dr. Valdeci de Lourdes Pinto Vasconcelos
Rua Procurador Antônio Benedicto Amancio Pereira, nº 350
Santa Helena – Ed. Promotor Edson Machado – Vitória – ES – 29050-265

Conselho Estadual de direitos Humanos do Estado do Espírito Santo
Presidente: Gilmar Ferreira de Oliveira
Emails: cedh@sejus.es.gov.br
Endereço: Av. Paulino Muller - Casa dos Direitos, nº 200
Ilha de Santa Maria - Vitória – ES - CEP: 29.051-035

Prefeito do Município de Aracruz Sr. Ademar Devens
Av. Morobá, 20 - Bairro Morobá - Aracruz - ES - Cep 29192-733

Rio de Janeiro, 27 de maio de 2011.
Pela Vida, Pela Paz
Tortura Nunca Mais!

Rua General Polidoro, 238 s/loja -Botafogo RJ CEP 22280-000
Tel (21) 2286 8762 Tel/Fax (21) 2538 0428
E-mail: gtnm@alternex.com.br
www.torturanuncamais-rj.org.br

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Pastoral Carcerária do Espírito Santo realiza V Assembleia Estadual

 
Nos dias 21 e 22 de maio, a Pastoral Carcerária do Espírito Santo realizou em Vitória sua V Assembleia Estadual. Participaram cerca de 110 pessoas, vinda das dioceses São Mateus, Colatina, Vitória e Cachoeiro de Itapemirim. O tema principal foi "Catequese no Cárcere", assessorado pelo Pe. Filip Cromheelke, que coordena a PCr de Salvador. Foi feita também uma análise de conjuntura do sistema prisional do ES, assessorada pelo Pe. Xavier, assessor eclesiástico da Coordenação Estadual da PCr.
 
Na manhã do sábado, participaram da assembléia a Defensoria Pública Estadual e da União; o juiz da coordenadoria da execução penal do Tribunal de Justiça; e o Ministério Público da Execução Penal. As autoridades atualizaram os agentes da Pastoral Carcerária sobre atuais acontecimentos, parcerias, elucidaram as dúvidas e a animaram os agentes. Foi falado também, sobre a implementação do Conselho da Comunidade no estado. 
“Assumimos assim,  o compromisso da construção de uma sociedade não vingativa, não punitiva, mas sim de  uma sociedade sem prisões, meta esta que a Pastoral Carcerária persegue com todo afinco”, comenta Camille Poltronieri, Coordenadora da PCr na Macrorregião Sudeste e Coordenadora Estadual da PCr no Espírito Santo.
Nos dias anteriores à Assembléia, o coordenador Nacional da Pastoral Carcerária, Pe. Valdir João Silveira, juntamente com a Defensoria Pública Estadual e da União, a Vice-coordenadora Estadual, Yeda Apolinário, e o assessor jurídico estadual,  visitaram sete unidades prisionais do ES, acolhendo, informando e assumindo os casos emergentes da população e do Sistema prisional solicitadas.

domingo, 29 de maio de 2011

“Não somos defensores de bandidos!"

Diálogo com a sociedade para esclarecer os equívocos sobre o trabalho dos defensores de Direitos Humanos

Padre Saverio Paolillo (PE. Xavier)


O grau de civilização de uma sociedade se mede pelo respeito que dispensa aos direitos humanos. Inclusive a viga de sustentação de qualquer organização sócio-econômico-político-religiosa que queira ser reconhecida como autenticamente humana deve ser o reconhecimento do princípio da dignidade humana de qualquer cidadão, independentemente da raça, do credo religioso, da orientação sexual, da idade, da profissão, da condição econômica, da função que desenvolve na sociedade e da ficha criminal.
Qualquer ação que culmine no desrespeito à dignidade do ser humano constitui um ato de lesa humanidade. Deve ser encarada com indignação por parte da coletividade.
As violações aos direitos humanos não só humilham a vítima, mas rebaixam toda a comunidade e degradam a raça humana, sobretudo quando contam com o apóio explícito ou a omissão da sociedade.

A criminalização dos defensores dos Direitos Humanos

O respeito pela dignidade e a luta em defesa dos direitos humanos deveriam ser inclinações naturais do qualquer pessoa. Constituem tarefas obrigatórias para todo ser humano.  Mas, infelizmente, não é isso que vivenciamos. O aumento assustador dos índices de violência e a desvalorização da vida estão transformando a defesa dos direitos humanos numa exceção, numa luta solitária de uns poucos idealistas inspirados em valores éticos e religiosos que, inclusive, acabam sendo perseguidos por setores da sociedade que, por má fé ou por superficialidade, identificam o compromisso em defesa dos direitos humanos com a proteção a bandidos. É dessa perigosa equação que surgem equívocos que precisam ser desmontados:

Primeiro equívoco: “Direitos humanos para os humanos direitos!

Os direitos humanos não são um favor, um ato de caridade, uma concessão benevolente de benfeitores da humanidade ou um prêmio concedido a quem se comporta bem. Nem a dignidade humana cessa de existir ou fica suspensa se uma pessoa comete um  crime. O homem e a mulher, pelo simples fato de sua condição humana, são titulares de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado em qualquer circunstância. Os direitos humanos são inerentes à própria natureza humana. Emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Constituem um direito adquirido que ninguém pode sonegar. Estão gravados em seu patrimônio genético. Entram em cena desde o momento da concepção da vida e seu reconhecimento concreto é determinante para o desenvolvimento integral do ser humano. Portanto, são universais, invioláveis, inalienáveis, imprescritíveis e exigíveis. Violá-los como forma de punição é optar pelo desprezo da dignidade humana. O ser humano é muito mais daquilo que faz ou deixa de fazer. Ninguém pode se atribuir o direito de identificá-lo com seus atos criminosos. É justo que seja responsabilizado pelos seus delitos, mas sem que haja comprometimento de sua intrínseca dignidade e sem perder a esperança na sua recuperação. Toda vez que se desrespeitar a vida e a integridade física e moral do ser humano e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e dar-se-á uma perigosa contribuição ao processo de degradação da sociedade.

Segundo equívoco: “Os direitos humanos passam a mão na cabeça de bandido e não olham o lado das vítimas”.

Há quem acredite que o reconhecimento dos direitos humanos inviabiliza a responsabilização e a punição daqueles que cometem crimes e acaba “aliviando a barra” dos agressores fazendo pouco conto do sofrimento das vítimas. Isso não é verdade. Os defensores de direitos humanos são solidários com a aflição das vítimas, não compactuam com nenhum tipo de delito e não defendem mordomias para aqueles que os praticam. Eles estão preocupados com o aumento assustador da violência. Inclusive, eles mesmos sentem na pele os efeitos destruidores da criminalidade. Mas, ao mesmo tempo, estão em permanente alerta para evitar que a gravidade da situação não se torne o pretexto para um combate violento à violência. A sociedade não pode cair na tentação da barbárie. “Justiça deve ser feita!”. Mas, infelizmente, o que as pessoas chamam de Justiça está muito mais para Vingança do que para Reparação. O anseio por Justiça está se tornando uma roupagem civilizada para camuflar nossa natureza bárbara que quer aflorar com a sede de vingança.
A Justiça deve ter como essência a reparação do mal causado, ao invés a utilizamos para causar dor e sofrimento ao transgressor. Afinal nada é reparado quando torturamos, mandamos alguém para a cadeia ou o executamos com uma injeção letal, apenas saciamos nossa vingativa sede de sangue retrocedendo para o código de Hamurabi”.  (Bernardo Machado).
É equivocada a abordagem de quem acha que a violência deve ser enfrentada com o recrudescimento e a exacerbação das penas. A história do sistema penitenciário brasileiro nos mostra exatamente o contrário. Um sistema punitivo violento e aviltante só desencadeia mais violência. É hora de sentar para uma reflexão profunda. O enfrentamento à violência exige várias respostas muito mais complexas do que a construção de um sistema punitivo e vingativo. Precisa investir mais na prevenção reduzindo os fatores que incentivam a prática da criminalidade. É necessário assumir um sério compromisso contra a impunidade que favorece a proliferação da violência, estimula a criminalidade, encoraja a ousadia do agressor e leva descrédito para com as instituições. Enfim, precisa construir um modelo de justiça que ajude a quebrar o círculo da violência através da recuperação do agressor, a reparação dos danos, a superação dos traumas causados pelo crime e a restauração das relações sociais entre agressores e vítimas . É nessa linha que se insere o trabalho dos defensores de direitos humanos.
 Já imagino a objeção que muitos gostariam de fazer nessa hora: “E se um marginal estuprasse sua filha o que você faria?”. Respondo com outra pergunta: “E se seu filho, aquele que você mais ama, estuprasse minha filha o que você faria?”. Já vi muitas pessoas invocando punições severas para com os filhos dos outros, mas fazer maior correria para livrar a cara dos próprios quando se  envolvem num crime. É fácil apontar o dedo para os outros. O filho do outro é maconheiro. Meu filho é doente. O filho do outro é trombadinha. Meu filho é estudante. O filho do outro não presta, o meu merece uma chance. É esse cuidado que temos com os nossos entes queridos, mesmo aceitando que sejam punidos pelos seus delitos, a fórmula para acabar com a violência. Provavelmente vai dizer que filho seu nunca vai fazer isso. O dia de amanhã ninguém sabe.

Terceiro equívoco: Os direitos humanos direitos de bandidos!”.

Essa afirmação demonstra total desconhecimento da luta dos defensores de Direitos Humanos. Hoje em dia eles estão envolvidos em todas as áreas visando a garantia de todos os direitos humanos. Mas é inegável que há uma concentração do esforço dos defensores dos direitos humanos nas pessoas que cometem crimes. Isso se explica, pelo menos, por dois motivos: primeiro porque a maioria dos “criminosos” pertence àquelas camadas da sociedade empobrecidas e desumanizadas pela negação do acesso aos direitos humanos. Com isso não se pretende justificar a violência, mas não dá para negar que o desrespeito pela dignidade humana ocasionada por um sistema econômico injusto e uma sociedade excludente constitui uma das portas de acesso à criminalidade. A maior parte da população carcerária é constituída por pobres e negros não porque estes sejam mais bandidos do que os brancos e os ricos, mas porque são pobres, isto é, não têm os meios financeiros para ter seus direitos garantidos
Portanto, optar, hoje em dia, pela população carcerária, é optar pelos mais pobres. Enquanto os ricos e poderosos se safam da cadeia por terem a possibilidade de contratar habilidosos defensores, a maioria dos encarcerados apodrece nas masmorras do sistema penitenciário brasileiro que é uma “escola pública’ de criminalidade.
O segundo motivo dessa preocupação dos defensores dos direitos humanos por aqueles que cometem crimes é porque eles são mais alvos da fúria policial e da truculência de desprezadores dos valores humanos.

Quarto equívoco: “Os direitos humanos atrapalham o serviço da polícia”.

Infelizmente há ainda quem acredite na incompatibilidade entre direitos humanos e segurança pública e recorre à violação de direitos, ao uso da força e à tortura para extorquir informações e solucionar os casos. Na realidade essas práticas são sinais de incompetência da polícia e acabam afastando a população. A sociedade precisa da polícia e esta tem o dever de garantir a segurança pública. “A pessoa incumbida da segurança pública, tem o dever de exercer a autoridade concedida para tal fim, sob pena de estar prevaricando, mas não pode extrapolar, sob pena de estar praticando abuso de autoridade. Prevaricação e abuso (ou desvio) de autoridade são crimes. Com efeito, a atividade daquele que lida com a segurança pública é deveras importante, mas exige-se sempre o bom senso e o equilíbrio nas ações, até porque estas se refletem como um todo na sociedade. Daí porque o preparo emocional (inclusive sua manutenção constante) e o preparo técnico (jurídico sobretudo, porque a operacionalidade para a polícia pressupõe, acima de tudo, embasamento jurídico-legal) são lados da mesma moeda” (Luiz Otávio O. Amaral).
O policial violento revela pouco profissionalismo, vira criminoso e gera o desprestígio social de uma categoria que para o bem da sociedade precisa ser revalorizada.
“A percepção por parte da população de que a policia respeita os direitos humanos, é honesta e trata as pessoas de forma justa é indispensável na construção de boas relações com a comunidade, sem o que não há bom fluxo de informações. Destaque-se que não há polícia eficiente em qualquer lugar do mundo que não seja respeitadora dos direitos humanos. Nesse sentido os direitos humanos, ao invés de constituírem uma barreira á eficiência policial, oferecem a possibilidade para que o aparato de segurança se legitime face à população e conseqüentemente aumente a sua eficiência, seja na prevenção, seja na apuração de responsabilidades     por atos criminosos” (Oscar Vilhena Vieira).
Os defensores de direitos humanos são parceiros da polícia eficiente e profissional, mas são adversários da polícia bárbara, violenta e truculenta.

Padre Saverio Paolillo (PE. Xavier)
Missionário Comboniano
Pastoral do Menor da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo
Rede AICA – Atendimento Integrado à Criança e ao Adolescente



Falo e choro

                                     
                                  Gilvan Vitorino C. S.
Eu gostaria de começar relatando um fato ocorrido, tudo conforme um bom amigo me relatou. Mas, resisto em fazê-lo ainda no início deste texto, para tentar evitar que a tragédia ocorrida em vez de produzir lágrimas proporcione o riso.
Alguns anos atrás, houve uma rebelião na UNIS, uma conhecida instituição do Estado do Espírito Santo cujo objetivo é aplicar medidas sócio-educativas aos internos – menores supostamente autores de atos infracionais. Já próximo do fim do levante, ouvi num programa de uma de nossas televisões que uma das reivindicações eram as visitas íntimas.
Visita íntima é a possibilidade de poder praticar uma atividade lúdica, cuja necessidade se manifesta inexoravelmente em homens e mulheres, negros, brancos, povos da floresta, ricos, pobres, doutos ou analfabetos. Manifesta-se também em agnósticos ou ateus; em evangélicos, espíritas, budistas ou católicos. E, ainda, manifesta-se em clérigos celibatários, pastores, pais-de-santo e em toda espécie de bípedes cuja função sexual esteja sã!
Mas o repórter disse que não haveria a possibilidade de visitas íntimas porque a lei não permite...
Ora, não sei de que lei falava o aprendiz de rábula. Talvez tivesse lido desatentamente algum texto de lei; ou talvez ouviu dizer que sexo não é tão importante e, mais ainda, que tais indivíduos nocivos à sociedade não o merecem. Quem sabe ele quisesse dizer que, porque menores de idade, não possuem esse benefício!
Há uns anos, ouvi um relato de um professor, também juiz de execução penal, contando que certa pessoa foi a um colega seu, cuja competência compreendia também a execução penal de certa cidade, solicitar autorização para que pudesse visitar intimamente seu companheiro na penitenciária - tratava-se de uma relação homoafetiva. Sem delongas, o magistrado negou-lhe a autorização; e, porque devia justificar sua decisão, afirmou ser o pedido “contrário aos seus valores”.
De vez em quando, diante de certas rebeliões em presídio, lembro de já ter presenciado um cavalo romper a cerca de um curral a fim de “visitar sua égua”. E, para que não se diga que a comparação é tosca, leiam-se as alegorias do rei Salomão... Os nossos detentos seriam mais felizes se houvesse sexo com fartura.
Trato o direito ao sexo como um legítimo direito da personalidade, pois compõe o que a Constituição Federal chama de dignidade da pessoa humana. Portanto, indisponível, etc. Não consigo aceitar que um ser humano, não adepto da castidade, seja privado de tão grande bem que é a atividade sexual.
Já existe projeto de lei para garantir ao preso (e, ainda que se diga que o menor não cumpre pena, preso está!) o direito à visita íntima. Hoje, sem expresso texto legal, eles ficam dependendo do arbítrio da autoridade carcerária.
Posto isso, passo ao relatado pelo meu bom amigo: estava ele no Hospital São Lucas quando passou pelos corredores, sobre uma maca, um moço gritando assustadoramente. Em seguida ele ouviu de uma das enfermeiras o que acontecera. O moço era um interno do Hospital Adauto Botelho, que estava com o pênis bastante avariado. Segundo o relato da servidora, ele viu um desses buracos que aparecem em paredes cujos revestimentos cerâmicos se quebram. Ele viu o orifício vaginiforme e lhe introduziu seu falo, mas o fez ainda semi-ereto. Então, o involuntário abstinente, tendo experimentado o que mais lhe parecia com um ato sexual, ousou uma desconexão...
Ao final do atendimento, contou a enfermeira, ele disse com palavras que prefiro evitar: “Eu arrebentei meu falo, mas tirei a virgindade daquele azulejo!”.
É isso, nós preferimos que esses “apátridas”, que “... estão privados de uma comunidade política que os contemple como sujeitos de direito...” (Salo de Carvalho, em “Pena e Garantias”, citando Celso Lafer) fiquem bem longe da gente. E, sexo, pra quê? Afinal, nossa moral não permite.

sábado, 28 de maio de 2011

Entrevista com Vera Malaguti Batista


“Precisamos parar de pensar em criminalidade e começar a pensar nas nossas criminalizações históricas”

Para Vera Malaguti Batista, a história do Brasil é uma história de violências

Por: Alessandra Barros

Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/ (publicada em 31/03/ 2008)
“Cada vez que o povo brasileiro tenta ser o protagonista de sua história ele é criminalizado e brutalizado”, constata Vera Malaguti Batista, secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ao analisar a violência no Brasil. Para ela, “a política criminal de drogas imposta pelos Estados Unidos só produziu aqui (no Brasil) dor e morte. É necessário jogá-la fora e começar a acreditar que a prisão é uma instituição abominável. Nossa história vai nos iluminar para termos soluções mais dignas para nossa conflitividade social.” Vera é também professora de Criminologia da Universidade Cândido Mendes e membro do Conselho Superior do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a prevenção do delito (ILANUD). É autora de O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história (Rio de Janeiro: Revan, 2004). Confira também outra entrevista concedida pela professora na IHU On-Line número 182, de 29 de maio de 2006, sobre segurança urbana.
IHU On-Line - Na sua opinião, quais são as origens da violência no Brasil?
Vera Malaguti Batista
- Eu não pensaria em termos de origem. A sociabilidade humana, entre outras coisas, também é violenta. A história do Brasil é uma história de violências. O genocídio colonizador, a destruição das civilizações indígenas e a violência fundacional da escravidão são as marcas, permanências históricas. Cada vez que o povo brasileiro tenta ser o protagonista de sua história ele é criminalizado e brutalizado.

IHU On-Line - A senhora acredita que existe um descompasso entre crescimento econômico e a segurança pública no país?
Vera Malaguti Batista
- Neste momento, eu acredito estarmos vivendo uma situação singular. Nós já sabemos, pelos fatos e estatísticas, que o neoliberalismo (que creio estar, com o fim da Era Bush, em fase descendente) produziu um colossal encarceramento de pobres no mundo e também políticas de segurança pública truculentas nas margens pobres do mundo. Só assim poderiam tentar concentrar tanto poder e riqueza. O Brasil seguiu essa tendência. O interessante é que já estamos vivendo um momento diferente, com avanços significativos no desenvolvimento econômico e melhora inegável nos níveis de renda, trabalho e oportunidades. No entanto, continuamos com um sistema penitenciário perversamente superlotado e com um Estado policial em curso. A policização da conflitividade social, a magnificação do sistema penal e, principalmente, a inculcação de uma cultura punitiva continuam a todo vapor, com o auxílio luxuoso da grande mídia, que perpetua, assim, nossas tradições de truculência e barbarização dos pobres.

IHU On-Line - As leis brasileiras precisam ser revistas? O que está sendo feito nesse sentido? 
Vera Malaguti Batista
- Creio que devem ser revistas no sentido de diminuir o poder punitivo e a constituição do Estado policial. Precisamos ter a coragem de nos afastarmos dos paradigmas punitivos e proibicionistas. A política criminal de drogas imposta pelos Estados Unidos só produziu aqui dor e morte. É necessário jogá-la fora e começar a acreditar que a prisão é uma instituição abominável. Nossa história vai nos iluminar para termos soluções mais dignas para nossa conflitividade social.
IHU On-Line - Quais são os maiores problemas do sistema penitenciário e como resolvê-los?
Vera Malaguti Batista
- O maior problema do sistema penitenciário é ontológico: ele nunca poderá ser um bom sistema. A pena e a prisão são produtoras de dor e apartação, ou seja, nada de bom pode vir delas. Precisamos pensar num projeto de desencarceramento. O grande jurista argentino Raúl Zaffaroni  denuncia que, na América Latina, cerca de 70% dos presos são provisórios. No Brasil, existem estados indicando que 40% dos nossos presos estão na cadeia sem condenação. Estão lá como a menina do Pará ,  jogada numa cela por uma pequena transgressão juvenil, sem acesso à defesa. Depois, ao contrário do senso comum, precisamos aumentar a comunicação com os brasileiros presos. É necessário aumentar as pontes, abrir portas, quebrar o maniqueísmo do “nós e eles”. Além disso, é necessário diminuir o sofrimento dos familiares de presos, que acabam cumprindo pena junto com seus entes queridos e passam por toda sorte de constrangimento e estigmatização.
IHU On-Line - Há uma subordinação do Estado ao crime organizado? Se sim, quais os sinais dessa subordinação?
Vera Malaguti Batista
- Eu questiono muito o conceito de “crime organizado”. Este é um paradigma já desconstruído pela Criminologia Crítica. É, como diria Zaffaroni, uma categorização frustrada. O que é “crime organizado”? O comércio varejista de drogas nas favelas do Rio ou o complexo farmaco-químico transnacional? O Estado brasileiro foi sempre subordinado às elites brasileiras, ao grande capital, aos latifúndios, às multinacionais, ao sistema financeiro. Sempre que algum governo tentou mudar isso pagou um preço muito caro: Getúlio  e Jango  são símbolos nesse sentido.

IHU On-Line - O combate à criminalidade passa por reformas políticas? Quais são as mais urgentes?
Vera Malaguti Batista
– Precisamos parar de pensar em criminalidade e começar a pensar nas nossas criminalizações históricas. Então, poderemos pensar em reforma agrária, numa escola pública que esteja à altura de nossa infância e juventude, numa saúde coletiva que esteja acima das empresas de seguro e do complexo farmaco-químico, enfim, nas agendas da vida, do trabalho, da cultura.

IHU On-Line – Qual é o papel do Ministério de Defesa brasileiro?
Vera Malaguti Batista
- O que eu desejo do Ministério da Defesa é que nos ajude a exercer nossa soberania junto com os países irmãos da América Latina que resistem aos ataques do império.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Alto Joeba - Anchieta - ES

                 Gilvan Vitorino C. S. 
São Mateus, aqui no Espírito Santo, é pra mim motivo de boas lembranças.

Foi lá que iniciei minha participação no movimento sindical. Embora eu já tivesse participado de muitas greves quando eu era professor do Município de Cariacica, foi em São Mateus que integrei uma direção de sindicato: o sindicato dos petroleiros do Espírito Santo.

Guriri é uma praia maravilhosa, especialmente agradável devido suas águas mornas. O clube CEPE é lindo: muita bola joguei no seu belo campo, naquela época em que minha coluna ainda me permitia. No Rincão eu comi uma das pizzas mais saborosas da minha vida. Ali, nas avenidas do centro da cidade, lembro de participar de uma passeata com o movimento dos trabalhadores sem terra... Foi São Mateus que primeiramente me apresentou o drama dos povos oriundos dos quilombos, agora sitiados por eucalipto ou vendendo mão-de-obra barata nos centros urbanos.  Foi lá que conheci meu grande amigo "Seu Agenor", que faleceu no final de 2010, um homem que fazia sua própria farinha e um beiju dos mais saborosos.

Em São Mateus, fiz grandes amizades. Alguns amigos há muito não vejo, mas meu coração se alegra com a lembrança deles.

Aquela cidade tem uma das mais belas vistas que conheço. Lá da caixa d’água, vê-se um vale lindo, serpenteado pelo rio Cricaré. Acho aquela vista tão linda que, penso, pode até estar ao lado do velho porto dentre as mais belas atrações da cidade.

Mas, recentemente, encontrei um local que permite uma vista que pode rivalizar com a de São Mateus. Trata-se de um local em Alto Joeba, em Anchieta, aqui no Espírito Santo, acessível pela BR 101. De lá, um local de grande altitude (na próxima vez, pretendo medir a altitude), vê-se Guarapari, Anchieta – com Castelhanos – e Piúma.

A paz lá em cima é algo cativante.

Se for possível conduzir até lá os amigos – esses amigos cuja simples lembrança alegra o coração -, aquele local certamente seria uma alegoria celestial.

Segue uma foto, a única que tenho, por enquanto, daquela bela vista.
                                                  (Foto copiada do ORKUT do Kadi)



Soldados amados ou não

               Gilvan Vitorino C. S.
A agressão e morte do advogado Geraldo Gomes de Paula, 63 anos, em 2007, quando tentava cumprir sua “função essencial à justiça”, tal como prescrevem a CF/88 e o Estatuto da Advocacia, enseja uma reflexão acerca do papel exercido pela polícia e o direito à defesa.
            Os policiais acreditam serem treinados para cumprir a lei, em qualquer caso, qualquer que seja o suspeito de ato ilícito. Ledo engano. Um estudo da obra de Zaffaroni e Nilo Batista (Direito Penal Brasileiro – I), mostra que há uma criminalização primária, no processo legislativo, que seleciona condutas a serem criminalizadas, e uma criminalização secundária das agências criminalizadoras, que escolhem os atores a serem investigados e punidos, a depender, ainda, da vítima. Dentre estas agências está a polícia.      
Não é desconhecido o tratamento diferenciado que os policiais dão ao indivíduo, dependendo da raça, atividade profissional, nível de escolaridade, poder aquisitivo... Eles até pensam estar agindo corretamente, pois não percebem que todo o sistema conspira contra os miseráveis e eles são o braço armado do Estado para contenção das massas desfavorecidas. Não percebem que há um processo de doutrinação e pressão hierárquica tão bem feita que mesmo policiais negros preferem a abordagem de negros, policiais pobres preferem a abordagem de pobres. É flagrante a diferença de atuação que praticam num baile funk e numa boate da zona norte da cidade de Vitória.
            Quanto ao advogado vitimado, procurava cumprir sua missão de assistência jurídica, convicto de que sem a participação de um defensor habilitado não se pode fazer justiça. Ciente da lição de Rui Barbosa - “... perante a humanidade, perante o cristianismo, perante os direitos dos povos civilizados, perante as normas fundamentais do nosso regime, ninguém, por mais bárbaro que sejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade” –, não podia negar defesa mesmo naquelas circunstâncias.
            Há um discurso criando pânico, levando a população e até os policiais a uma sensação de insegurança muito além da verdadeira realidade. Portanto, é preciso cautela maior dos policiais, os quais também são indivíduos do povo. Precisam lembrar que “somos todos iguais, braços dados ou não” e que essa doutrina que seguem, irrefletidamente, pode um dia ser-lhes desfavorável. Porque, num primeiro momento de suspeição deles mesmos, tornar-se-ão vítimas das arbitrariedades de um “estado policial” que atua em oposição ao “estado de direito”.           
Mesmo assim, se um dia o algoz virar vítima, haverá sempre um advogado para cumprir as palavras de Rui e pô-lo sob o abrigo da legalidade.

Foi o Bino quem me contou: o Santo e o Doutor

        Gilvan Vitorino C. S.
Hoje, saindo de Viana, vi o Bino no ponto de ônibus e, então, parei. Ofereci-lhe carona. Deu sorte, pois disse que iria pelo mesmo caminho que eu. Assim, abri-lhe a porta e ele subiu, não sem antes pedir licença. Tão logo partimos, percebi que na verdade mesmo que o Bino precisasse que eu me desviasse do meu caminho eu o levaria... É que eu, no fundo, queria muito dar carona a alguém. Então, ao vê-lo, percebi logo que ele poderia ser mais do que companheiro de mera viagem.
Eu o conhecera no Fórum. Pedira-me ajuda. Ajudara-o.
Um velho negro com cara de quem já viveu um bocado. E vida dura.
Lá no Fórum, o Bino era só o Bino. Quando entrou no meu carro, contudo, fez o que era passado - e passado dos bons... – presente. Aquele velho senhor enviou-me o meu avô. Assim, ao dar-lhe carona, ressuscitei o meu velho. E não foi um gesto dele que trouxe meu avô de volta; não foi sequer sua modesta vestimenta; também não foi sua aparência. Não, nada que os olhos pudessem perceber lembrava meu avô. Nem os ouvidos meus tiveram qualquer participação na ressurreição do meu velho, embora o Bino falasse com uma voz amigável, mansa, clara. Com uma daquelas vozes dos que viveram, viram, refletiram e aprenderam, mas ainda não sabem de tudo. (E talvez poucas coisas sejam tão grande sinal de vida como a consciência de não saber tudo!).
Assim, ao entrar no meu carro, aquele velho senhor, cansado, pois viera de longe, trouxe meu avô através do gostoso cheiro que exalava. Foi o seu cheiro que trouxe de volta a... vida. Era um cheiro de quem se perfuma somente com a inodora água do banho; um cheiro de mato em dia de chuva fina, temperado com o cheiro da terra e, predominantemente, um cheiro suave dos que pitam aqueles cigarros de palha. Sei lá, eu estou tentando dizer que era um cheiro complexo, mas, confesso, não sou muito bom em descrever aromas. Tinha mais ingredientes ali naquele ambiente fechado do carro, sei que tinha, mas o que me causou impacto foi aquele aroma de quem fuma cigarros de palha, e daqueles feitos de fumo de rolo, aquele fumo que se corta habilmente com um bom canivete.  Ah, o Bino ressuscitou o meu avô através do seu cheiro...
Fizemos um longo percurso, dialogando... Eu falava pouco, percebendo que era momento de calar-me. Era quase um monólogo, na verdade. Eu via que ali estavam quase setenta anos de vida. Falou-me de dor e de alegria. Contou-me das estradas em que trabalhara: “era tudo de terra, Bino?” - admirava-me. Lembrou-se das tantas horas que gastava para sair da sua terra – Muniz Freire – para chegar a Vitória: dois dias de viagem. “Primeiro, nóis ía até Castelo, em velho ônibus, depois, de ‘Maria Fumaça’, até Cachoeiro. Ali, nóis pernoitava. No dia seguinte, novamente de ‘Maria Fumaça’, até Argolas”, disse, sorridente.
Deu tempo de ouvir muita coisa. E, embora tudo seja digno de ser contado, uma história precisa ser narrada. O Bino, foi o Bino quem me contou... Contudo, ainda que eu o chame de Bino, não era bem este o seu nome. Mas, é melhor que fique assim, pois vai que eu fique empolgado, talvez ainda impactado com o encontro com aquele velho, aquele velho que teve o poder de ressuscitar o meu querido avô, e altere alguma coisa da história! Assim, correndo este risco, é melhor que eu preserve a sua identidade, para que não lhe seja atribuído qualquer relato pouco fiel ao que ocorrera.
Ou, ainda, pode ser que eu tenha inventado essa história e esteja, agora, esforçando-me para imprimir-lhe uma autoridade transcendental. Ou ela foi um produto da minha esquizofrenia de cada dia, aquela esquizofrenia terapêutica que nos arrebata – a todos nós! - de uma realidade e nos remete a outra, dando-nos um pouco de sossego e gozo. Ou o nome do autor seja, de fato, Bino. Ou, Benedito, quem sabe? Não importa... Não importa o nome ou se o que contarei aconteceu. E, se não aconteceu, poderia ter acontecido.
Ele tinha 06 filhos, todos negros como o pai.
Por causa de um fato criminoso ocorrido na cidade, sabendo que eram sempre os negros os primeiros suspeitos de cometer tais atos, resolveu ir à delegacia dar explicações e mostrar sua inocência para o Doutor delegado. Todavia, temia ir sozinho, pois vai que o delegado o pusesse na cadeia... Assim, foi ao encontro do seu compadre Bino e o convidou para acompanhá-lo.
O compadre até aceitou ir junto, mas, duvidando que isto seria óbice a uma prisão,  e, ainda, temendo que o delegado ao invés de prender um preto prendesse dois, fez sugestão ao Santo: “Compadre Santo, a gente não vai lá só nóis não. O senhor chama os meninos, todos os seis meninos, e leva eles junto com nóis. Vai ver, compadre, que com aquela penca de moleque junto, mesmo que fosse um delegado desgraçado de ruim teria dó de prender o pai deles.”  
Assim, concordando, o Santo foi acompanhado de todos os seis filhos e do compadre Bino para falar com a autoridade.
Chegando, foi bem recebido. O Doutor foi logo vendo aquela “penca” de negrinhos, todos muito fortes, mesmo os que ainda pequeninos. Impressionado, a autoridade foi logo perguntando:
— Seu Santo, eu não entendo uma coisa: como é que os meus filhos comem de tudo o que há de melhor lá em casa: carne de primeira, verduras belíssimas, frutas fresquinhas e brilhantes, mas são raquíticos daquele jeito? O que o senhor dá para os seus filhos para que eles fiquem tão vistosos e robustos desse jeito?
— Ah, doutor, é que, na verdade, os seus filhos não comem de primeira nada. Eles comem é de segunda. Os meus, sim, comem o que há de melhor.
“Ih, vai ser preso agora mesmo”, pensou o Bino, que o acompanhava.
O doutor delegado fez cara de espanto. Levantou da cadeira, virou-se para uma janela que dava para a rua principal da cidade, pensou, pôs a mão na cabeça, e...
— Como assim, homem de Deus? Eu não estou dizendo que lá em casa o que entra pra comer é o que há de melhor pra ser comprado? Eu mesmo faço as compras – explicou o doutor.
— E é isso mesmo que eu ouvi e entendi, Doutor delegado. E é por isso que vejo somente uma coisa que o senhor falou que... O senhor me desculpe, Doutor, eu falar isso, mas tem uma coisa errada no que o senhor falou – disse o Santo, com voz meio trêmula.
— E o que está errado, homem?
— É o seguinte, Doutor. Lá na roça... bom, é lá na roça que vem essas coisas que o senhor disse que compra pra sua casa. Eu digo na roça, Doutor, pois eu nunca vi essas coisas sendo criadas na cidade. É da roça que vem a carne de porco que o senhor come; é de lá, também, que vem a abóbora, a batata e o leite. Tudo vem de lá, Doutor – explicou.
— Sim, homem, eu sei disso.
— Pois é, Doutor. Quando a gente vai no chiqueiro tratar dos porcos e vê um leitão caído, que morreu naquela noite, já com uma cor diferente, a gente corre, esquenta a água, pela ele e limpa. Aí, a gente salga ele, se estiver desconfiado do cheiro, e leva para o supermercado e vende por um preço até mais barato... Tem muito porco lá, Doutor, e isso amiúde acontece. E são ordens do patrão.  Comer a gente não come, porque a gente gosta de ter sempre um porquinho separado, cevando, pra nossa despesa. E mais, Doutor, aquelas galinhas grandes, bonitas, com coxas grossas e com peito que mais parece de um peru, a gente também não come. Aquelas é pra vender. Não pode pôr a mão não, porque o patrão não gosta. É tudo contadinho. A gente come aquelas que ficam soltas no terreiro, comendo mato, formiga, ciscando o dia todo. Lá um dia ou outro é que a gente dá um pouquinho de milho. Elas demora crescer, mas quando tá grande, ah, Doutor, é uma carne firme, muito gostosa. Essas do terreiro a gente nem precisa pôr aquelas gotas de remédio na água, pois elas bebem ali por perto mesmo, no riachin, água limpinha.
            — As verduras, Doutor – continua o Santo -, também o patrão diz que nóis num pode pegar não. Ele diz que tá tudo já encomendado. E olha que nóis cuida delas diretinho, bate sempre um produto nelas pra espantar as pragas. Elas fica muito bonitas, sabe? Mas eu desconfio que se aquele remédio dá uma ardência nos zói da gente, bonitas elas pode até ficar, mas num sei se devia comer. A nossa verdura, nóis têm uma hortinha pertinho do riachin que dá de cumê pra nóis. Nóis colhe tudinho de lá, cada dia... Nem sempre tem de tudo, pois o tempo dá, Doutor, só aquilo que é da época. Mas, o que tem a gente come. Come pouco, mas confia nelas, pois é a gente mesmo que faz o esterco, mexe a terra...
O Doutor delegado, mais ainda espantado, só ouve.
A meninada, maltrapilha, uns descalços, outros com chinelos velhos que davam dó, quietinha, ao redor do Santo, com os olhos arregalados, olhando o Doutor vestido de terno.
O Delegado senta na sua confortável cadeira e, ainda pensativo, com cara de quem descobre que passou muito tempo achando que sabia já demais das coisas da vida, indaga do seu Santo o que ele queria com ele, ali na delegacia.
— É que aquilo que aconteceu semana passada, Doutor, eu já venho aqui pra que o senhor saiba que eu não tenho nada com aquilo. Vindo pra cá, Doutor, eu até ouvi gente falando tudo que é calúnia, dizendo que é coisa de preto... Eu até trusse o cumpadre Bino junto comigo, pro senhor saber que as minhas coisas é tudo direitinho.
— Não se preocupa não, homem de Deus, quem fez aquilo é gente desocupada. Eu sei que o senhor não tem tempo pra bobagens e se ocupa bem de criar seus filhos. Quem duvidar disso, é só olhar pra eles e ver o porte dos meninos.
O Santo, aliviado com o que ouvira, olhou para o seu compadre Bino e sorriu um sorriso tímido, daqueles sorrisos felizes, mas com o cuidado da modéstia. Então, agora se sentindo menos tenso, chama a meninada pra ir embora, pedindo licença ao Doutor delegado. Já na porta, porém, volta-se e se dirige à autoridade.
— Pois é, Doutor delegado, o senhor me desculpe, mas eu acho que o senhor não deveria de aceitar ser enganado não. Se o Doutor quiser, eu mando um dos meninos trazê pro senhor alguma coisinha lá da roça, mas alguma coisinha que a gente possa tirar, com a permissão do patrão. É como eu disse, Doutor, só não posso pegar daquelas plantação de primeira, pois elas é pra vender. Qualquer dia desses, eu mando um franguinho pro senhor. Não é muito grande como esses que o senhor come, mas o doutor vai ver que carne mais gostosa. Aproveito, Doutor, e mando trazer também uns quiabo pra sua senhora fazer uma galinha com eles.
O delegado, já sentado na sua confortável cadeira, agradece o prometido. Diz, entretanto, que não precisa, mais pela preocupação com os parcos recursos do Santo do que pelo desinteresse no presente.
O Santo, todavia, faz-se de desentendido, adivinhando o pensamento do Doutor.
— Deixa, Doutor, que logo logo eu vou matar um capadinho que nóis tá cevando. Aí, eu mando pro senhor um pernil dele... Vai ver o delegado o que é um pernil de porco criado solto: pouca gordura e muita carne, Doutor.
Tendo me contado isso, o Bino percebeu que estava chegando o local onde ficaria. Suspirou aliviado, agradecendo pela carona, pois sem ela ele não conseguiria pegar o ônibus das três da tarde para sua casa.
Parei. Ele abriu a porta. Olhou pra mim, e disse: “Qualquer dia desses o senhor vai lá em casa pra comer um feijão”. E finalizou: “Deus te ajude, pelo favor da carona que o senhor me fez”.
           De tudo o que o Bino disse, só esta última fala eu assim corrigiria: “Deus ajude o Bino, pelo presente que ele me deu...”

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Saída temporária

                               
                       
                        Gilvan Vitorino C. S.
O que são as saídas de que fala a LEP – Lei de Execução Penal, 7210/84?

Segundo prescrito,
Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:
         I - visita à família;
       II - freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução;
       III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
Parágrafo único.  A ausência de vigilância direta não impede a utilização de equipamento de monitoração eletrônica pelo condenado, quando assim determinar o juiz da execução.
Art. 123. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos:
        I - comportamento adequado;
        II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente;
        III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
Art. 124. A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano.
              § 1o  Ao conceder a saída temporária, o juiz imporá ao beneficiário as seguintes condições, entre outras que entender compatíveis com as circunstâncias do caso e a situação pessoal do condenado: 
        I - fornecimento do endereço onde reside a família a ser visitada ou onde poderá ser encontrado durante o gozo do benefício; 
        II - recolhimento à residência visitada, no período noturno;
        III - proibição de frequentar bares, casas noturnas e estabelecimentos congêneres. 
        § 2o  Quando se tratar de frequência a curso profissionalizante, de instrução de ensino médio ou superior, o tempo de saída será o necessário para o cumprimento das atividades discentes. 
§ 3o  Nos demais casos, as autorizações de saída somente poderão ser concedidas com prazo mínimo de 45 (quarenta e cinco) dias de intervalo entre uma e outra.
Art. 125. O benefício será automaticamente revogado quando o condenado praticar fato definido como crime doloso, for punido por falta grave, desatender as condições impostas na autorização ou revelar baixo grau de aproveitamento do curso.
        Parágrafo único. A recuperação do direito à saída temporária dependerá da absolvição no processo penal, do cancelamento da punição disciplinar ou da demonstração do merecimento do condenado.

Este benefício é para os presos que cumprem pena no regime semi-aberto.

Todavia, aqui no Espírito Santo, o benefício não tem sido deferido aos presos que, embora estejam no regime semi-aberto, não passaram pelo regime fechado. Explicando melhor: os juízes da execução penal do Espírito Santo entendem que quem começa a cumprir sua pena de prisão inicialmente no regime semi-aberto não faz jus às saídas temporárias. Antes de criticar esta postura, este entendimento (?), falemos um pouco das saídas temporárias.

A LEP prescreve tais saídas temporárias, como se percebe no texto legal, objetivando que o condenado tenha contato com o mundo fora das grades, prioritariamente com seus familiares. Segundo tem sido apregoado, trata-se de um benefício que visa a preparar o preso para a vida em liberdade... Como prescrito, o benefício visa à “visita à família”, “freqüência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução” e “participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social”.

Ora, embora a LEP não preestabeleça dias para que o preso possa sair, nas varas de execução penal do Espírito Santo há datas predeterminadas para a fruição deste benefício. Segundo nos informou o promotor de justiça que atua na execução penal, partiu do Ministério Público esta proposta.

Portanto, aqui no Espírito Santo, há datas “especiais” para a fruição do benefício da “saída temporária”. Mas, pergunta-se: datas “especiais” para quem?

Consideremos algumas datas: 01 de janeiro, carnaval, semana santa, 07 de setembro, dia das mães, dia dos pais, dia das crianças, natal, aniversário do filho, aniversário do outro filho, aniversário da esposa, aniversário de casamento, aniversário do pai, aniversário da mãe, aniversário de um irmão, etc. E muito mais etc!

Ora, quem determina o que é especial para o preso? O promotor? O juiz? Vejam que a LEP fala de visita à família (desconsiderando, ainda, os outros motivos). Não seria importante que as datas pudessem ser escolhidas pelo preso?

Além disso, com a concentração das saídas temporárias em determinadas datas, os cartórios das varas de execução penal ficam abarrotados de autos de processos.

Algumas observações importantes:

1)     Saída temporária no fim de ano não é “INDULTO DE NATAL”, como tem sido chamada pela mídia, por veículos de comunicação desatentos. Até advogados incorrem neste equívoco. O Indulto é outra coisa (que poderá ser tratado neste BLOG em outra oportunidade);
2)     Informação importante do Dr. Cezar Ramaldes, coordenador do GETEP – Grupo Especial de Trabalho em Execução Penal -, quando fizemos as considerações acima em reunião com a Pastoral Carcerária: o preso pode solicitar ao diretor da unidade prisional que encaminhe para a vara de execução penal, antecipadamente, as datas das 05 saídas que pretende desfrutar. Ele, embora tenha dito que foi uma iniciativa deles a predeterminação de algumas datas, consente na possibilidade de escolha livre (fora o CARNAVAL!) se a opção for feita antecipadamente para o ano seguinte.

Outra consideração importante: há presos que têm fruído o que garante a LEP quanto à possibilidade de estudos fora do estabelecimento prisional. Há alguns que fizeram preparatório para o vestibular, foram aprovados, e hoje estudam em universidades. Portanto, eis um benefício que ainda é pouco aproveitado mas que pode ser ampliado. 

CRÍTICA:
Como aceitar que um preso que inicia o cumprimento de pena no regime semi-aberto não possa desfrutar do benefício da saída temporária concedido a quem progrediu do regime fechado para o regime semi-aberto?

O argumento é o de que a LEP exige o cumprimento de pelo menos 1/6 da pena para a concessão do benefício.

Vejam que o legislador teria feito uma confusão se a interpretação pudesse ser realizada restringindo a concessão do benefício: se alguém que está no regime fechado progride para o semi-aberto é porque cumpriu pelo menos 1/6 da pena. Portanto, seria redundante a exigência de 1/6 da pena cumprida. E se aquele que está no regime semi-aberto aguardar o cumprimento de 1/6 da pena progredirá para o regime aberto e perderá a possibilidade de desfrutar das saídas. 

Quanto àquele que inicia sua pena no regime semi-aberto, seria possível interpretar o sistema jurídico (Constituição Federal e legislação) dando maior benefício àquele que inicia a pena no regime fechado em detrimento daquele que inicia no regime semi-aberto? Certamente que não!

(Que bom que temos informações de que o entendimento não tardará a ser alterado e o benefício será concedido também àquele que inicia o cumprimento da pena no regime semi-aberto.)