terça-feira, 31 de julho de 2012

A estética da criminalização



VITORINO C.S., Gilvan. "A estética da criminalização". Disponivel em: (http://www.ibccrim.org.br)

                        Gilvan Vitorino C. S.*
A criminalização de condutas é uma prática corriqueira. Trata-se de atribuir caráter de ilicitude penal a um ato...

Muitas vezes ao nos depararmos com o termo criminalidade temos dificuldade de saber do que se trata. Ora se refere ao cometimento de algum fato  descrito nas normas jurídicas penais, ora a um comportamento que se pretende reprovar, até mesmo algum incidente de indisciplina na escola, como adverte Wacquant.[1] E, ainda, não é incomum que alguma atividade seja nomeada de criminosa dependendo do indivíduo que lhe deu causa ou, o que é mais frequente, da classe social a que pertence tal indivíduo. Por exemplo: uma conduta de adolescentes no interior de um shopping center poderá ser uma baderna ou uma tentativa de “arrastão”[2]. A subtração de um objeto de pequeno valor poderá ser um “transtorno”[3] ou um furto. Uma briga no interior de um baile funk seria o quê? E numa boate freqüentada pela classe média ou alta?

Michel Misse chama de criminação a qualificação da conduta feita segundo a representação social acerca dela, e de incriminação a atribuição desta conduta a certo indivíduo.

Criminalizar é um ato de vontade, ou seja, exige que alguém decida que conduta pode ser considerada crime e quem será apontado como seu autor.

Isso tem grande importância jurídica e política pois, mais que o objeto (o indivíduo cuja ação é posta sob juízo), aquele que efetua o juízo de valor acerca da conduta é que fará sua prescrição ou proscrição.

Também é importante lembrar o que Misse bem verificou: uma conduta é criminada e, em seguida, incrimina-se um indivíduo. Todavia, quando se inverte esta ordem, ou seja, quando alguém é incriminado antes que qualquer conduta aconteça, trata-se do que Misse chamou de “sujeição criminal”.

Exemplo de sujeição criminal pode ser encontrado facilmente: as abordagens policiais em geral se valem disso, pois presumem que determinados indivíduos, por motivo de cor, vestimenta (lembra do frequentemente dito: “ele não parecia bandido pois estava tão bem vestido!”), bairro onde residem, etc, tenham cometido crimes...

O fenômeno da sujeição criminal constitui um paralelo com a invisibilidade, identificada na obra “Cabeça de porco”. Esta invisibilidade é causada por preconceito ou indiferença, que leva a estigmatização de indivíduos, ou seja, “tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos”[4].

O cinema frequentemente é meio de criminalização. Povos inteiros são incriminados previamente, levando ao estigma de traficantes (já foi o boliviano, tempos atrás, hoje, o traficante tem sido o colombiano), de terroristas (Oriente Médio), de contrabandistas (chineses, por aqui, embora se confunda contrabando com descaminho. Mas, nossa criminalização – criminação, na perspectiva de Misse -  nem sempre faz remissão a tipo penal...) etc.

Tanto os órgãos administradores do sistema penal como a sociedade em geral são pródigos em criminalização. Até os nossos doutos dos programas de rádio criminalizam...

Alguns destes o fazem sorrindo, falando bonito, com voz mansa... São autoridades em qualquer assunto, sabem de tudo, enciclopédicos, estão acima de qualquer suspeita, polidos, bebem do bom vinho.

No dia 04 de junho, o programa “Liberdade de expressão”, da CBN, tratou de um tema próprio deste mês, mês de festas de São João: a tradição de soltar balões.

Três autoridades no assunto expuseram suas opiniões (os três de sempre do programa: Artur Xexéo, Carlos Heitor Cony e Viviane Mosé).

Tentarei reproduzir o ocorrido, socorrido pela memória:

Começa o Xexéo: para ele, esta prática de soltar balões é absurda, uma atividade de gangues, um crime. Eles invadem propriedades privadas, destroem florestas, violam a vida...
E mais ele falou, sempre negativamente.

Em seguida, entra o Cony: “Eu já fui baloeiro”.

Rapidamente, evitando interromper, exclama a Vivi (como é chamada a Viviane Mosé): “Que lindo, Cony!”

Segundo o Cony, seu avô e seu pai foram baloeiros. Para ele, soltar balões é uma tradição poética. Até um livro (traduzido para o francês) sobre balão ele escrevera. Não é coisa de gangues, faz questão de destacar. Foi baloeiro até os 30 anos...

Mas Cony era diferente: seu pai, segundo ele, o ensinou a soltar balões de acordo com as correntes de ar, para que caíssem no mar. Até se lembrou de um que soltara e caíra no mar...

Por derradeiro, entra a Vivi: “Também fui baloeira...” (que lindo, Vivi! - poderia ter expressado o Cony, mas ficou calado).

Mas Vivi, que estava encurralada (entre a criminologia de Xexéo e a licenciosidade de Cony), sobe no palanque bradando: tudo bem, mas essa prática de soltar balões já não pode ser aceita nos nossos dias. Segundo ela, atendendo à fúria do Xexéu e ao saudosismo autoindulgente do Cony, é preciso pensar em novos modelos de jogos e brincadeiras como alternativa...

Só não captei bem a ideia da Vivi de política pública: alternativa para o Xexéo ou para ela e o Cony?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. (Coleção conflitos direitos e culturas). Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

SELECT * FROM OPC_ARTIGOS WHERE JUR_ID = 10703;


[1] WACQUANT, 2003, p. 153.
[2] Essa conduta ficou  conhecida a partir das praias do Rio de Janeiro. Segundo relatos da imprensa, um grupo de pessoas, geralmente de indivíduos com  menoridade penal (menos de 18 anos), saiam em disparada pelas areias das praias, causando algum rebuliço e subtraindo objetos dos banhistas.
[3] O rabino Henry Sobel, que foi detido em março de 2007, sob acusação de ter furtado quatro gravatas de lojas de grifes luxuosas em Palm Beach, na Flórida (Estados Unidos). "É muito difícil para mim explicar o inexplicável", afirmou em entrevista neste sábado. Ele pediu desculpas pelos "transtornos" e afirmou que quem cometeu o ato "não é o Henry Sobel que vocês conhecem". Disponível em: www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano, acesso em 21 ago 2009.
[4] SOARES; BILL; ATHAYDE, p. 175.

domingo, 22 de julho de 2012

Tolerância e Asilo


            João Baptista Herkenhoff

À primeira vista o tema direito de asilo localiza-se numa área distante, sem qualquer interesse para os cidadãos em geral. Quando muito, este tema estaria na cogitação de jovens que algum dia pretendessem seguir a carreira diplomática, ou área próxima dessa.

Se isto fosse verdade, eu não deveria publicar este artigo em jornais lidos pelo público em geral, mas apenas em publicações especializadas.

Há, entretanto, um equívoco nessa percepção restritiva da importância de debruçar-se o cidadão à face do direito de asilo.

Na verdade o direito de asilo sustenta-se num princípio fundamental da convivência democrática, qual seja, a tolerância.

A reflexão sobre o direito de asilo tem correspondência com a reflexão ética, que é indispensável à formação cidadã.

O "direito de asilo" protege todo aquele que é vítima de perseguição em seu país e que, por este motivo, busca um chão que o acolha.

direito de asilo cria uma prerrogativa para o indivíduo perante o Estado em que busca asilar-se. Gera um dever para o Estado que é procurado como refúgio.

Esta prerrogativa dá proteção a todo aquele que é perseguido de forma injusta ou arbitrária.

O asilo é expresso nos seguintes termos, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Nenhum Estado civilizado pode negar asilo quando requerido com base em razões fundadas. E a própria fundamentaçao é relativa. Num Estado que caia num regime ditatorial é fundado que peça asilo todo aquele que, em princípio, possa ser vítima de perseguição. 

Se o Estado, que se vê diante de um pedido de asilo, quiser prova da perseguição, em muitos casos exigir essa prova seria o mesmo que pedir o cadáver do perseguido.

Há dois casos que excluem o direito de asilo: perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum; atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.

Não exclui o direito de asilo: a alegação falsa ou simulada de crime comum ou ato contrário aos princípios das Nações Unidas; a alegação de crime comum, ou ato contrário aos objetivos das Nações Unidas, quando o Estado que persegue não oferece qualquer garantia de julgamento justo e público do acusado.

Nas duas situações referidas é indispensável que a perseguição seja legitimamente motivada para impossibilitar o asilo. Assim é que, mesmo no caso de atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas, só a perseguição legítima impede o asilo.

João Baptista Herkenhoff, Juiz de Direito aposentado, é Professor Pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor. Membro da Academia Espírito-Santense de Letras.
Autor do livro Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).

Este artigo pode ser livremente republicado.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Relaxamento de prisão pela Polícia


                               João Baptista Herkenhoff

A própria Polícia pode relaxar uma prisão em flagrante, ou essa atribuição é privativa do Poder Judiciário?

No tempo em que fui Juiz de Direito, chancelei a revogação de flagrante por iniciativa da Autoridade Policial. Louvei inclusive a atitude de Delegados que assim agiram. Hoje, na condição de Juiz aposentado, só posso falar sobre o assunto doutrinariamente.

O tema tem suscitado debate.

A Constituição Federal diz, peremptoriamente, no artigo quinto, inciso quarenta e cinco: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.

Pinto Ferreira, numa obra monumental sobre a Constituição de 1988, pensa que “a autoridade policial não deve, ex propria authoritate, considerar como indevida a prisão e soltar o preso, pois tal competência é do juiz.”

Na mesma linha é o pensamento de Celso Ribeiro Bastos: “Ao juiz cabe determinar a soltura daquele que, de qualquer forma, for ilegalmente preso.”

Em sentido contrário, Fernando Capez manifesta-se favorável ao relaxamento do flagrante pelo Delegado de Polícia “quando se encontrasse diante de um fato que tornaria a prisão abusiva”.

Também a favor da possibilidade de revogação policial da prisão é o pensamento de João Romano da Silva Júnior quando argumenta que não cabe retardar a soltura “se o fato cientificado à autoridade policial se afigurar numa potencial restrição à liberdade do cidadão e puder desde logo ser sopesado e aquilatado.”

Pelas citações feitas, já se percebe que a favor ou contra a licitude do relaxamento policial do flagrante há opiniões de grande peso doutrinário.

Como nos colocar então à face do dilema?

Creio que a tese contrária à possibilidade de ser um flagrante relaxado pelo Delegado de Polícia homenageia a interpretação textual da Constituição. Trata-se da exegese literal, tão ao gosto dos velhos doutrinadores.

Já os que defendem que o ato policial, revogatório da prisão ilegal, é jurídico socorrem-se da exegese teleológica e sociológica.

É sabido que os magistrados estão sobrecarregados de trabalho. A espera pela revogação judicial da prisão ilegal pode demorar algum tempo, principalmente quando se trata de indiciados que não podem pagar advogado. Uma simples noite na prisão pode destruir uma vida. É desumano impedir que a própria Autoridade Policial reconheça o abuso da prisão em flagrante e determine, em consequência, a cessação do constrangimento.

Espero que os Delegados de Polícia que foram meus alunos (e muitos foram) revoguem as prisões em flagrante quando se defrontarem com prisões ilegais e por isto mesmo abusivas. Agindo assim, prestarão homenagem ao ex-professor.

João Baptista Herkenhoff, professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor. Autor do livro Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).

                                               Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

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