quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Justiça sem ódio

                                  João Baptista Herkenhoff
O cidadão comum pode ser tomado pelo sentimento de ódio à face de certas situações. A vítima de um crime violento, por exemplo, tem razões para nutrir ódio contra a pessoa do criminoso. Essa não é a atitude recomendada pela Ética Cristã, mas é compreensível. Coloque-se o leitor na situação de um pai, cuja filhinha pequena foi vítima de estupro. Que penalidade quererá para o estuprador? Se houvesse a pena de morte e se pedisse a pena de morte, sua explosão de revolta, ainda que não aprovada, deveria ser compreendida.

O desejo de vindita do ofendido, em alguns casos, só é rechaçado por um sentimento religioso sincero e profundo.

Muito diferente da reação do agredido à face do agressor é o comportamento que se exige do magistrado quando se depara com os casos que lhe caiba julgar.

Jamais a sentença judicial pode ter o acento do ódio, da vingança, do destempero verbal ou emocional.

Ao juiz pede-se serenidade, quietude, brandura. A autoridade da toga não se assenta nos rompantes de autoritarismo, mas na imparcialidade das decisões e na retidão moral dos julgadores.

O magistrado deve ser tão impolutamente equilibrado, harnonioso, equânime que até o vencido deve respeitá-lo, embora recorra do julgamento desfavorável.

Como disse com muita precisão Georges Duhamel, “a verdadeira serenidade não é a ausência de paixão, mas a paixão contida, o ímpeto domado.”

Ou na lição de Epicuro: ”A serenidade espiritual é o fruto máximo da Justiça.”

Em determinados momentos históricos, seja pela gravidade dos crimes em pauta, seja pelo alarido em torno dos crimes, a opinião pública pode tender à aplicação da pena de talião.

Cederá o juiz à pressão do vozerio?

Respondo peremptoriamente que não.

Que garantia tem um povo de viver em segurança, de desfrutar do estado de direito democrático, se os juízes se dobrarem, seja ao poder das baionetas, seja ao pedido dos influentes, seja às moedas de Judas, seja a um coro de vozes estridentes ou silenciosas, seja ao grito das ruas?

Um país só terá tranquilidade, prosperidade e paz se dispuser de uma Justiça que fique acima das paixões, firme, inabalável, impertubável, equidistante de influências espúrias, uma Justiça sem ódio. O ódio conspurca a Justiça.

Aí vai esta reflexão teórica, apropriada para qualquer tempo e para qualquer lugar. A serenidade, a isenção, a capacidade de colocar-se acima dos estampidos que procuram direcionar e capturar a mente dos juízes – este é um desafio que deve ser enfrentado com dignidade e coragem sempre.

Deixo ao leitor a tarefa de cotejar esses princípios permanentes, fundamentados na ética do ofício judicial, com fatos concretos que estejam, eventualmente, acontecendo hoje no Brasil.

João Baptista Herkenhoff,
Juiz de Direito aposentado e escritor.

É livre a divulgação deste artigo por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O LEGADO DE NELSON MANDELA

                    José Roberto Andrade
Nós últimos dias todos recebemos consternados as notícias sobre o estado de saúde do líder sul-africano e prêmio Nobel da Paz, Nelson Mandela, chamado carinhosamente por seus conterrâneos de Madiba e por Barack Obama de “herói do mundo”, quando de sua visita oficial ao Senegal. Sua atuação fundamental para o fim do apartheid, o então regime de segregação racial na África do Sul, permanecerá como um legado de liberdade para todo o mundo.

A Organização das Nações Unidas (ONU) prepara ações para a Década Internacional dos Povos Afrodescendentes (2013-2022). O decênio foi estabelecido pela própria Organização por meio da Resolução A/66/460 após um ano de debates em torno do racismo e das situações social, econômica e política da população negra mundial na contemporaneidade.

Neste dia 20 de julho o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado pela Lei 12.288/10 completa três anos desde sua publicação e é um marco legislativo na luta contra a discriminação racial no Brasil. Ainda hoje muitos questionam sobre a necessidade de tal Estatuto e esta é uma questão central no tema da interação racial e étnica em nossa sociedade.

Para os que são favoráveis à adoção de um instrumento jurídico como este, se colocam os que entendem caber ao Estado papel decisivo para a correção de distorções históricas excludentes da população negra.

Os que se alinham em sentido contrário entendem desnecessária qualquer intervenção promocional de igualdade racial por parte do Estado. Como escreveu em recente artigo o Ministro Luis Roberto Barroso do Supremo Tribunal Federal, há três posições básicas em relação à questão racial. A primeira é a do mais puro e assumido racismo, baseado na crença de que alguns grupos de pessoas são superiores a outros.

A segunda sustenta que, no caso brasileiro, somos uma sociedade miscigenada, na qual ninguém é diferenciado por ser, por exemplo, negro. Reconhecem desequilíbrios no acesso à riqueza e às oportunidades, mas eles seriam de natureza econômica, não racial. Por essa razão, os defensores desse segundo ponto de vista opõem-se às políticas de ações afirmativas, que levariam à “racialização” da sociedade brasileira, em canhestra imitação dos norte-americanos.

A terceira posição é a de que é fora de dúvida que negros e pessoas de pele escura, em geral, enfrentam dificuldades e discriminações ao longo da vida, claramente decorrente de aspectos ligados à aparência física. Uma posição inferior, que vem desde a escravidão e que foi potencializada por uma exclusão social renitente.

Não é mais possível negar a discriminação ou considerá-la irrelevante na estrutura da desigualdade racial brasileira, sob pena de ser indiferente aos dados apresentados por inúmeros institutos de pesquisa, inclusive os oficiais, que demonstram, ano após ano, a permanente discrepância dos indicadores sociais entre negros e brancos.

Depois da Nigéria, o Brasil é o segundo maior país de população negra no mundo e o primeiro fora da África, sendo ainda, historicamente, uma das economias mais excludentes. A população negra é maioria entre os mais pobres e embora esta realidade seja amplamente conhecida, não é comum ser reconhecida.

Daí a importância daqueles que a reconhecem, que entendem que isso pode significar um avanço em direção à superação, um passo adiante em relação à indiferença. Os que reconhecem a existência da discriminação aceitam sua qualificação como questão social pendente de solução.


* ADVOGADO E PRESIDENTE DA COMISSÃO DE IGUALDADE RACIAL DA OAB/ES

 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

NOTA PÚBLICA DE REPÚDIO

As entidades da sociedade civil capixaba abaixo relacionadas, unidas pelo compromisso na defesa intransigente da Dignidade Humana como valor máximo a ser respeitado e promovido por um Estado que se quer Democrático de Direito, e irresignadas face à gravidade dos fatos ocorridos em 15 de julho de 2013 quando da votação na Assembleia Legislativa dos Espírito Santo do Decreto Legislativo que propunha o fim do pedágio da Terceira Ponte entre Vitória e Vila Velha, vêm a público manifestar:

O REPÚDIO à atitude despótica e anti-democrática do Presidente da Assembleia Legislativa, deputado Theodorico de Assis Ferraço, ao impedir o acesso do povo às dependências daquela Casa que deve permanecer sempre aberta. Nunca é demais lembrar que o fechamento do Parlamento, via força policial, impedindo o acesso do povo e exercendo terror aos parlamentares é atitude típica das Ditaduras e absolutamente incompatível com o atual momento histórico;

O REPÚDIO ao Presidente da Assembleia ao descumprir o acordo firmado depois de 17 horas de negociação em Audiência de Conciliação na Ação de Reintegração de Posse, seguidos 10 dias do movimento #OcupAles. O Presidente, neste ato, desrespeitou o povo, os ocupantes, as entidades da sociedade civil e o próprio Poder Judiciário, que se esforçaram sem medida para evitar o uso da força policial;

O REPÚDIO à atitude dos 16 Deputados que, ao invés de abrirem-se para o diálogo franco, corajoso e transparente, como rezam os princípios democráticos, preferiram a obscuridade das negociações de bastidores, longe do povo e das câmeras de TV;

A SOLIDARIEDADE aos estudantes e manifestantes agredidos injustamente pela Polícia Militar, especialmente, a Vítor Noronha, membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória, preso simplesmente por querer o diálogo em meio à barbárie.

O REPÚDIO ao Governo do Estado que tem se omitido e optado por responder às manifestações populares e suas legítimas bandeiras exclusivamente com o uso arbitrário e excessivo da força policial, demonstrando desapreço ao diálogo democrático e programático que sempre buscamos.

Ao permitir que as dependências da Assembleia Legislativa fossem ocupadas por quase 500 policiais militares em um único dia, o Governo afrontou a toda população capixaba que clama por segurança pública nas ruas e não encontra nenhuma resposta.

Diante desses fatos, as entidades EXIGEM rigorosa apuração dos excessos e abusos praticados pela Polícia Militar e comunicam que INTERROMPEM totalmente o diálogo com o Governo do Estado até que medidas concretas sejam anunciadas com relação à pauta de reivindicações já apresentada.

Vitória, 17 de Julho de 2013.ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Conselho Estadual de Direitos Humanos - CEDH
Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória - CJP
Conselho Regional de Serviço Social – CRESS-ES 17ª Região
Associação dos Docentes da Ufes - ADUFES
Centro de Apoio aos Direitos Humanos “Valdício Barbosa dos Santos”
Centro de Defesa dos Direitos Humanos “Dom Tomás Balduíno”
Centro de Defesa dos Direitos Humanos “Pedro Reis”
Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra
Coletivo Fazendo Direito
Coletivo de Mulheres Negras Aqualtune
Fórum Estadual de Juventude Negra – FEJUNES
Fórum de Mulheres do Espírito Santo
Grupo de Estudos e Pesquisas em Análise de Políticas Públicas – Fênix (UFES)
Movimento Cidadãos em Defesa das Políticas Públicas e dos Direitos Humanos
Movimento Nacional de Diretos Humanos – MNDH/ES
Movimento Nacional de População de Rua - ES
Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente – Neca (UFES)
Núcleo de Estudos da Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos – Nevi (UFES)
Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas e sistemas (UFES)
Sindicato dos Bancários dos Espírito Santo
Sociedade Colatinense de Defesa e Proteção dos Direitos Humanos

União de Negros pela Igualdade – Unegro-ES

sábado, 13 de julho de 2013

O Direito e a Poesia

                          João Baptista Herkenhoff
      Acabo de lançar um novo livro, que saiu sob a chancela de GZ Editora, do Rio de Janeiro. Dei à obra este título: Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves. O leitor questionador pode logo perguntar. É possível o Direito encontrar-se com a Poesia? Isto não é uma contradição?
As leis estabelecem penas que devem ser aplicadas aos que praticam atos proibidos: sanções criminais ou sanções civis. O jurista, servidor da lei, procura estabelecer a ordem e impõe as penas previstas, quando necessárias. Já o poeta avista horizontes, luta por um mundo ideal, bem diferente do mundo real. Na busca do sonho, o poeta afronta a lei, sempre que a lei é empecilho aos avanços sociais.
Em muitos casos só se alcança o Direito pelo caminho da transgressão. É o que sempre se viu através da História. Os inconfidentes mineiros opuseram-se à Lei do Quinto. Graças a sua rebeldia, o Brasil veio a conquistar a Independência.
É preciso distinguir transgressão violenta e transgressão pacífica. No Brasil de hoje, regido por uma Constituição cidadã, conforme epíteto criado por Ulisses Guimarães, não se pode aprovar a transgressão violenta. A transgressão pacífica, entretanto, deve ser exaltada, como símbolo democrático.
Que são os movimentos de desobediência civil senão a transgressão pacífica e coletiva das leis? Foi este o caminho escolhido por Nelson Mandela, que afrontou o apartheid e transmitiu à posteridade um legado, que não pertence apenas aos seus concidadãos sul-africanos, mas à Humanidade inteira.
Disse Eduardo Couture que o dever do jurista é lutar pelo Direito. Mas no dia em que encontrasse o Direito em conflito com a Justiça, lutasse pela Justiça.
A recomendação do professor quase octogenário que escreve este artigo, endereçada aos jovens rebeldes de hoje, que participam de passeatas ou atos em Vitória, no Espírito Santo e no Brasil, é a de que sejam transgressores pacíficos. Tenham sensibilidade para separar alhos de bugalhos. Não se deixem envolver por pessoas que ontem, hoje e amanhã souberam, sabem e saberão utilizar-se, hipocritamente, de bandeiras nobres para alcançar objetivos escusos.
Sejam transgressores com idealismo e poesia.

João Baptista Herkenhoff é magistrado aposentado e Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo. Professor itinerante, tem dado cursos e palestras por todo o território nacional.

É livre a divulgação deste artigo, por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.


sexta-feira, 14 de junho de 2013

Nota do CEDH-ES


NOTA PÚBLICA

O Conselho Estadual dos Direitos Humanos (CEDH), em seu compromisso de defender a vida e nesse sentido se contrapor a toda e qualquer forma de violação à dignidade da pessoa humana, vem a público, consternado, manifestar repúdio às declarações do Secretário de Segurança Pública do Estado do Espírito Santo, André Garcia, bem como do titular da Delegacia de Adolescentes em Conflito com a Lei (DEACLE), Welligton Lugão, divulgadas recentemente na imprensa local.

Em tais declarações, a impunidade é apontada como sendo a principal razão do aumento da participação de adolescentes na prática de crimes graves, bem como da ineficácia da atividade policial de repressão da violência.
Contudo, tais declarações reforçam estereótipos que criminalizam os adolescentes, em detrimento de uma reflexão mais ampla sobre as reais causas que levam alguns ao cometimento de atos infracionais.

Não podemos admitir que 02 (dois) importantes atores da Política Estadual de Segurança Pública, que possuem o dever constitucional de zelar intransigentemente pela garantia dos direitos humanos de nossas crianças e adolescentes, reproduzam publicamente um discurso punitivo que somente satisfaz uma sociedade vingativa que, a despeito de querer evitar o derramamento de sangue de suas vítimas, proclama e festeja o suplício como a solução milagrosa da crescente onda de violência e criminalidade.

Acreditamos que a redução da maioridade penal ou o aumento do prazo de internação não são soluções viáveis à redução da violência, em especial, a praticada por adolescentes em conflito com a lei, principalmente porque as “milagrosas” soluções apresentadas implicam em mais gastos públicos na política de atendimento socioeducativo do Estado, que atualmente chega a gastar cerca de R$12.000,00 por mês com cada adolescente.

Por isso, defendemos a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente em sua integralidade, sobretudo no que tange a teoria da proteção integral, e o mandamento constitucional que garante que crianças e adolescentes são prioridades absolutas de nossa nação.

Queremos a segurança da sociedade capixaba. Isto é um dever do Estado. Outras regiões do Brasil têm índices de violência bastante inferiores aos do Espírito Santo. Por isso, não cabe aos dirigentes públicos apresentar justificativas infundadas, nem transferir responsabilidades de suas funções para outras esferas públicas.

Vitória, 13 de Junho de 2013.

Gilmar Ferreira de Oliveira
Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos

Bruno Pereira Nascimento
Vice Presidente do Conselho Estadual de Direitos Direitos Humanos Es

terça-feira, 28 de maio de 2013

A PEC da maioridade penal

            Gilvan Vitorino C. S. 
A Proposta de Emenda à Constituição nº 33 - PEC 33 -, de 2012, de autoria do Senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), pretende instituir o critério biopsicológico para relativizar a maioridade penal entre 16 e 18 anos. O indivíduo responderia penalmente se constatada sua capacidade de “[...] compreender o caráter criminoso de sua conduta [...]”.   Ainda, a relativização dependeria da gravidade do ato cometido.

A iniciativa pode ser contestada segundo várias perspectivas. Pretendo fazê-lo tentando elidir o argumento inserido na justificação que acompanha a proposta. Segundo o proponente, não é insuperável a questão da possibilidade de se aferir o nível de consciência acerca da ilicitude dos atos de um adolescente de 16 anos. Para tanto, ainda segundo o Senador, levar-se-iam em conta “[...] seus antecedentes pessoais, seu histórico familiar, as condições sócio-econômicas e culturais que lhe foram impostas [...]”

Contudo, a experiência demonstra que o sistema de justiça criminal é e sempre foi seletivo, premiando afortunadas vítimas com a proteção e perseguindo desafortunados indivíduos com as mais cruéis atividades do Estado – a criminalização e punição. E quanto mais o sistema encontra meios pouco objetivos de atuação, mais grassa a seletividade.

A lei antidrogas (Lei 11.343/2006) é um exemplo que permite uma analogia pedagógica. Em seu artigo 28, § 2º, lê-se: “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. O resultado desse leque de discricionariedade foi e tem sido desastroso: são muitos usuários cumprindo pena de prisão como se fossem traficantes!  E esses criminalizados são sempre os de baixa escolaridade, negros, de vocabulário tosco, moradores da periferia, etc.
Embora esta seletividade seja própria do sistema, não podendo ser extinta – a não ser, segundo minha opinião e de grandes estudiosos do tema, pela sua abolição (abolição da justiça criminal) -, o sistema penal de justiça exige objetividade para que o grau de decidibilidade dos seus agentes (policiais, promotores de justiça, juízes, etc) seja o menor possível e se evitem as discriminações. Ora, deixar que alguém, mesmo peritos, decida se um indivíduo pode ou não responder pelos seus atos na esfera penal, por um critério subjetivo, é perigoso, pois gera insegurança para o processado.
Com um critério biopsicológico, esperar que se aprofunde a criminalização de certos indivíduos já predestinados ao cárcere não é exagero. Veja-se exemplo de avaliação psicossocial que encontrei nos autos de uma ação contra um menor de idade (de 15 anos), da Vara da Infância e Juventude de Vila Velha, feito por uma assistente social e uma psicóloga. Na conclusão do Relatório Psicossocial, pode-se ler: “O adolescente não apresenta identificação com a cultura associada à prática de ato infracional como, por exemplo, o linguajar. Em sua fala, coloca frequentemente que não pertence a esse mundo [...]”
Assim, se a PEC 33 prosperar, mais ainda o sistema prisional será abarrotado com indivíduos de um mundo de lá: o espaço da outridade, que não é o meu, é de outro. Pois esta PEC não é para todos, é para o outro.


sábado, 6 de abril de 2013

Memória e Verdade


                   João Baptista Herkenhoff

Se o Supremo Tribunal já jogou uma pá de cal para cobrir os ignóbeis atos de tortura, para que serve a Comissão da Verdade?

O Supremo Tribunal Federal entendeu que os torturadores do regime ditatorial, instaurado no Brasil em primeiro de abril de 1964, foram amparados pela Lei da Anistia, conquistada por pressão do povo em 28 de agosto de 1979.

Essa decisão da mais alta corte do país foi lavrada em nove de abril de 2010.

Somente dois ministros divergiram da maioria: Ayres Britto e Ricardo Lewandovski.

Ayres Britto foi incisivo: “O torturador não é um ideólogo, não comete crime de opinião, não comete crime político. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado”.

O Supremo errou, mas é o mais alto tribunal do país. Na forma da Constituição, diz a palavra final.

Assim sendo, mesmo discordando, temos de aceitar o supremo erro da suprema corte.

Juridicamente, não podemos impugnar a decisão. Só a História poderá fazê-lo. A História é implacável, motivo pelo qual até hoje Piltatos é símbolo do juiz covarde.

Vamos tentar esclarecer as razões que nos autorizam rechaçar a esdrúxula interpretação dada pelo STF à Lei da Anistia.

O Supremo fundamentou seu entendimento no princípio da segurança jurídica que estaria abandonado se deixasse ao desamparo da anistia os torturadores.

Segurança jurídica a proteger a tortura, que absurdo! O que a consciência nacional reclamava é que o Supremo tivesse a coragem de decidir: “Tortura não é crime politico, os torturadores não foram anistiados. Nenhuma situação política justifica ou autoriza torturar um ser humano.”

Mas voltando ao início do artigo: à face da soberana decisão do Supremo, que papel pode ser desempenhado pela Comissão da Verdade?

Vejo dois objetivos que devem ser perseguidos pelas Comissões Estaduais da Verdade e pela Comissão Nacional da Verdade:

  • primeiro objetivo – descobrir a verdade, revelar a verdade principalmente para os jovens porque a História não se pode perder e mesmo os erros devem ser conhecidos para que não sejam repetidos; um povo que não conhece seu passado, quer o passado de glórias, quer o de ignomínias, não saberá construir o futuro; é preciso descerrar a cortina que encobriu os crimes da ditadura;
  • segundo objetivo – dar a palavra aos torturados, permitir que manifestem a revolta à face do que sofreram, pois um sofrimento suplementar que lhes foi imposto consistiu no silêncio a que foram submetidos. A Bíblia, que é um livro sábio, diz que a palavra liberta (João, 8, 32). O direito de falar, que lhes foi negado, as Comissões da Verdade devem lhes restituir.

 

João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado e escritor. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo.



 

É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.

 

terça-feira, 2 de abril de 2013

Abaixo o “medo da liberdade”

                          Gilvan Vitorino C. S.

O artigo abaixo, “SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!, sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião”, de Paulo Nascimento, enseja uma discussão interessante.

Lembro a reflexão que fez Paulo Freire – sobre o que ele chamou “medo da liberdade” -, quando dizia que muitos (ele refletia no seu "Pedagogia do oprimido") eram contra a educação dos operários, dos pobres, dos despossuídos, porque a sua conscientização e politização – por meio da educação - poderia levar à anarquia:
Não são raras as vezes em que participantes destes cursos [os cursos de capacitação que ministrava Paulo Freire], numa atitude em que manifestam o seu ‘medo da liberdade’, se referem ao que chamam de ‘perigo da conscientização’. ‘A consciência crítica (... dizem...) é anárquica’. (FREIRE, 2009, p. 23)
Quanto aos que estão presos, eu diria que se passa como Freire verificou acima... Não só as autoridades têm medo de que os encarcerados tenham consciência da sua dignidade (mulheres e homens a cujos direitos não renunciaram – nem podem renunciar), mas, também, uma parte expressiva da população teme isto.
O sistema prisional alberga os invisíveis (ver “Cabeça de porco”, de, entre outros, MV Bil) e os que se inserem no que Michel Misse chama de “sujeição criminal”. Esta clientela do sistema prisional não adentra as prisões por necessariamente ter cometido um fato delituoso. As vítimas do sistema prisional são pré selecionadas, podendo ter cometido algum delito ou não: são, quase todas, previamente incriminadas... Por isso, além de terem sido consideradas descartáveis ao serem encarceradas, são mais ainda descartadas ao serem violentamente tratadas pelo sistema prisional. E, também por tudo isso, todos aqueles que têm alguma ligação com estes indivíduos encarcerados são também considerados indivíduos descartáveis, podendo ser tratados como indivíduos de menor dignidade (veja-se como são tratados os familiares que visitam os seus na prisão).
Assim, negar-lhes uma ampla divulgação dos seus direitos, negar-lhes uma ampla assistência jurídica, negar-lhes o contato com os movimento sociais (especialmente aqueles movimentos cuja bandeira é a bandeira dos Direitos Humanos) não é um desvio do sistema. Toda essa negação faz parte da estrutura de domínio; é a regra, não a exceção.
Porque um preso que conheça de forma crítica seus direitos, sua condição de sujeito de direitos, poderá questionar demais. Um preso assim pode por em xeque as decisões de um agente prisional, as decisões de um diretor de presídio, as decisões de um secretário de justiça. Um preso assim pode até por em dúvida as práticas de um juiz ou de um promotor da execução penal (que atua no sistema prisional).
Mas, uma consciência crítica assim (crítica em geral e, especialmente, de espírito arguto em se tratando de direitos do preso) pode, quando se tratar dos parentes e pessoas próximas dos presos, transformar-se em meio de libertação. Não uma libertação das grades (mas também delas), necessariamente, mas uma libertação do jugo de ser considerado e tratado como um indivíduo de menor dignidade.
Uma consciência assim pode levar ao bloqueio de ruas, rodovias... Pode levar a greves de fome, a manifestações em frente das unidades prisionais. Uma consciência de que se é sujeito da história (como apregoou Paulo Freire) e sujeito de uma especial dignidade como é a dignidade de todos os indivíduos pode levar a uma ação como esta, chamada de “movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião”, de Alagoas.

SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!

http://opiocoisanenhuma.blogspot.com/
Por: Paulo Nascimento
Sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião
“Quem vê um pântano à luz da lua pode enganar-se: aquela lhe parecerá uma visão de paz. Mas, por baixo, não passa de podridão e lama em fermentação. Nós não queremos a paz dos pântanos, a paz enganadora que esconde injustiças e podridão”
(Dom Helder Câmara)
Marcos Monteiro havia dito em Um jumentinho na avenida: A missão da igreja e as cidades, que Maceió nos permite visualizar o que está acontecendo em nosso planeta. Nessa cidade – segue Marcos – encontramos todos os problemas do nosso século, da prostituição à ameaça ambiental, da criança de rua à violência institucional. Se não me engano, Marcos Monteiro morou aqui na década de 1990. No entanto, sua intuição segue bastante atual. Maceió continua sendo uma vitrine interessante para se ver o mundo. Mais ainda para se ver o Terceiro Mundo! Ao modo de um ponto do holograma, Maceió hospeda em si toda a complexidade das lutas que se travam em muitas partes do mundo hoje.
Na manhã de hoje (03/11) as mulheres dos presidiários do Baldomero Cavalcante (o “Cadeião”), próximo à UFAL, voltaram a interditar a BR-104, com piquetes de pneus queimados, impedindo o trânsito nos dois sentidos. Eu saía da UFAL para casa. Para não ficar preso no congestionamento, tomei um desses transportes alternativos e perambulei por duas horas pelas ruas e vielas não pavimentadas do bairro Santos Dummont. O motivo da manifestação, segundo o noticiário, havia sido a suspensão da entrada de objetos suspeitos no presídio e a restrição das visitas.
A manifestação das mulheres dos presidiários do Cadeião pode ser vista por muitos ângulos diferentes. Para o cidadão ordinário que já anda meio ressentido com protestos desse tipo, e só deseja voltar para casa depois do trabalho, da escola ou da universidade, a manifestação das mulheres quase sempre é vista como um vandalismo disfarçado de reivindicação, que penaliza quem não nada tem a ver com o problema. Para a polícia (epifania do poder repressor do Estado!), obviamente, ali está uma possibilidade de perigo à ordem pública a ser reprimido até que a ordem se refaça. Para a imprensa, o piquete das mulheres dos presidiários é somente mais um fato corriqueiro a merecer poucas linhas num editorial da seção “cotidiano” e poucos minutos no jornal das seis.
Pois de minha parte penso que a “desordem” dessas mulheres é tão legítima quanto necessária. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que aquilo que chamamos de “ordem” é caos, e aquilo que chamamos de “caos” é útero de uma ordem nova, diferente, justa e mais humana. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que nossa paz é uma “paz de pântanos” (Dom Helder), que esconde injustiças e podridão.
Essas mulheres são todas pertencentes às classes mais baixas da sociedade. O encarceramento de seus companheiros agrega a isso um fardo que nenhum “sexo frágil” suportaria carregar. Já pude conversar com algumas delas, e descobri como seu cotidiano é transformado pela prisão de seus companheiros. São elas que se encarregam da administração da casa, duplicando a jornada de trabalho. Sobre elas duplica o cuidado dos filhos, e a elas compete a batalha no campo judicial para fazerem valer os direitos que seus companheiros têm perante a lei. Não podendo pagar os serviços dos melhores advogados, recorrem à Defensoria Pública, que, como todo órgão do Estado, convive com a morosidade e com uma maneira peculiar de tratar as pessoas mais pobres de nossa cidade, marcada sempre por um semi-descaso. Nos dias de visita, dormem nas filas, sempre ao relento. O piquete, portanto, é para elas a única forma de fazerem-se ouvir perante a sociedade. Como mulheres que se sabem sujeitos de certos direitos, não podem fazer como as feministas mais sofisticadas, que atuam no campo da ciência e da ideologia. De que outra forma essas mulheres invisíveis poderiam fazer ouvir a sua voz?
O que é caos? O que é ordem? O que é paz? O que é desordem? São as questões suscitadas pelo piquete de pneus das mulheres dos presidiários do Cadeião. Caos e ordem são apenas uma questão de perspectiva? Se for, assumo a perspectiva dessas mulheres baderneiras, incontidas, desordeiras, rebeldes, quase sempre negras e sempre pobres. Algumas delas foram presas, acusadas de apedrejar os ônibus que tentaram atravessar seu piquete. Duvido que tal atitude da polícia, que mais do que uma ação contra indivíduos é uma tentativa de intimidação do movimento, sirva para anular a força dessas mulheres.
Assim, já sei que destino dar aos pneus velhos no fundo do meu quintal. Vamos impedir a proliferação do mosquito da Dengue!

Jurista marginal

                            João BaptistaHerkenhoff

Quando eu era Juiz de Direito, em atividade, era chamado por algumas pessoas, pejorativamente, com o codinome de jurista marginal. O epíteto não me era atribuído pelos leigos em Direito, o que seria menos doloroso, mas por profissionais que integravam o universo jurídico

 

Isto acontecia porque, seguindo a consciência e por uma questão de foro íntimo, eu dava sentenças que, naquela época, não guardavam sintonia com o pensamento dominante e a jurisprudência dos tribunais superiores.

 

Na década de 1960 –esclareça-se esta data porque é essencial – preferia absolver a condenar. Optava por dar penas leves, quando era obrigado a condenar, do que aplicar pesadas penas. Acreditava na palavra e dialogava com acusados e réus, tratando-os como seres humanos, portadores de dignidade porque tinham na alma, ainda que trangressores da lei, o selo de Deus. Confiava em acusados e réus, firmando com eles pactos de bem viver. Emocionava-me porque nenhuma lei ou código de ética proíbe o juiz de ter emoções. Colocava nos despachos e decisões a Fé que recebi na infância. Assim agia por entender que o Estado é laico mas o magistrado, embora integrando um dos Poderes estatais, pode revelar sua crença, sem ferir a laicidade do Estado. Esforçava-me por obter acordos, no juízo cível, evitando que as partes prolongassem as contendas.

 

Esta visão do Direito não era, de forma alguma, partilhada, naqueles tempos distantes, pelos magistrados do andar de cima. Não fosse o apoio entusiástico e a compreensão integral principalmente de três desembargadores – Carlos Teixeira de Campos, Mário da Silva Nunes e Homero Mafra – teria sido muito difícil resistir às pressões.

 

Porque tudo que eu fazia, era feito com retidão de propósito, o apelido de jurista marginal me magoava muito.

 

Certo dia veio-me a inspiração. Por que eu não transformava a alcunha ofensiva em arma de defesa, de modo a desarmar os opositores?

 

Havia, dentre os que se opunham à conduta judicial adotada, pessoas de espírito nobre, que nada tinham de pessoal contra o juiz marginal, mas apenas discordavam de seus métodos.

 

Em homenagem a estes era preciso dar uma resposta racional e elegante aos questionamentos.

 

Tudo ponderado, como se diz no final das sentenças, escrevi um livro, defendendo a orientação adotada nos decisórios que estavam sendo atacados. Dei ao livro este título: Escritos de um jurista marginal.

 

Atribuindo a mim mesmo o adjetivo nada elogioso, dava nos adversários mentais um dribe decisivo.

A obra foi publicada pela Livraria do Advogado Editora, de Porto Alegre. Procurei, de caso pensado, uma editora localizada bem longe do Espírito Santo. Lá das plagas gaúchas, eu lançaria o livro. Pareceu-me bastante adequado escolher o sul do Brasil para dar início ao périplo pretendido.

 

João BaptistaHerkenhoff é magistrado aposentado, palestrante e escritor. Acaba de publicar Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves (GEditora, Rio de Janeiro).



 

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