segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Direitos Humanos: desafios no Espírito Santo


        João Baptista Herkenhoff

Sempre é oportuno discutir a questão dos Direitos Humanos.

Numa primeira apreciação, a realidade nos diversos Estados brasileiros tem similitude. Entretanto, aprofundando a análise, percebe-se que as questões cruciais não são exatamente as mesmas em toda parte.

Ocorrem contradições no Espírito Santo, em matéria de Direitos Humanos.
De um lado temos uma realidade que deve ser denunciada; de outro, testemunhamos uma luta que deve ser celebrada.

Essa realidade que deve ser denunciada tem duas faces.

A primeira face é aquela realidade social negativa que está presente, lamentavelmente, em todo o país: crianças nas ruas, deterioração do ensino público, condições precárias de saúde atingindo grande parte da população, sistema carcerário destruidor da pessoa humana, fome, desigualdade gritante e escandalosa.

A segunda face é aquela, também presente no Brasil em geral, mas que tem tido, em nosso Estado, cores que não nos honram. Essa segunda face pode ser resumida numa frase: violência dramaticamente revelada pelas altas taxas de homicídio.

Segundo dados coletados pelo Ministério da Justiça e tabulados pela Folha de São Paulo, o Espírito Santo foi o segundo Estado mais violento do país tomando-se como medida da violência o número de assassinatos por grupo de 100 mil habitantes (56,6).  Em primeiro lugar, situou-se o Estado de Alagoas (66,2).

Um Estado que, por suas riquezas e dimensão reduzida, poderia equacionar seus problemas, dentro de um modelo sócio-econômico com credenciais para servir de paradigma, longe está de cumprir esse destino alvissareiro. Reagiu ao poder diabólico do crime organizado mas ainda não se libertou totalmente desse estigma.

Se esses traços tão tristes de negação dos Direitos Humanos devem ser apontados e condenados, há uma réplica a essas negações, que deve ser celebrada.

Refiro-me à atuação da sociedade civil organizada, contra a violência, contra a corrupção, contra toda forma de desrespeito à sagrada condição humana. Essa presença da sociedade civil não tem sido apenas uma presença de vigilância cívica e de enfrentamento heróico em face das forças sociais deletérias.

Nossa sociedade civil organizada tem tido também uma ação afirmativa, tão construtiva quanto a ação de denúncia porque restauradora da fé nos destinos do povo. Contam-se às centenas as organizações da sociedade civil endereçadas à dignificação da pessoa humana.

Quase sempre o trabalho das associações e respectivos voluntários é um trabalho anônimo, feito com o pudor dos humildes, com a generosidade dos que se doam, com a grandeza dos que confiam e sonham. Assim a luta diuturna de milhares de cidadãos não aparece na imprensa porque a mão direita esconde da mão esquerda o Bem que faz.

Devemos celebrar o que tem sido feito e confiar em que a luta coletiva poderá superar os desafios de hoje. Luta coletiva porque “uma andorinha só não faz Verão”.

João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, Supervisor da Coordenação Pedagógica na Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo.



Autor, dentre outros livros, de: Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).

sábado, 4 de agosto de 2012

A Favor da Vida


João Baptista Herkenhoff
Sou a favor da Vida. Contra o aborto, a pena de morte, a guerra. A favor de políticas públicas que favoreçam o parto feliz e a maternidade protegida. Contra a falta de saneamento nos bairros pobres, causa de doenças e endemias que produzem a morte. Discordo da percepção limitada, embora possa ser honesta e sincera, dos que reduzem a defesa da vida à proibição do aborto quando, na verdade, a questão é muito mais ampla. Abomino a hipocrisia dos que sabem que a defesa da vida exige reformas estruturais, mas resumem o tema a um artigo de lei porque as reformas mexem com interesses estabelecidos e ofendem o deus dinheiro. Sou contra o pensamento dos que não admitem o aborto nem quando é praticado por médico para salvar a vida da mãe, mas aceitariam essa opção dolorosa se a parturiente fosse uma filha. Sou contra a opinião que obscurece as medidas sociais, pedagógicas, psicológicas, médicas que devem proteger o direito de nascer. Reprovo o posicionamente dos que lançam anátema contra a mulher estuprada que, no desespero, recorre ao aborto quando, na verdade, essa mulher deveria ser socorrida na sua dor. Se não tiver o heroísmo de dar à luz a criança gerada pela violência, seja compreendida e perdoada.


Hoje eu debato esta questão doutrinariamente mas, quando fui Juiz, eu me defrontei com o aborto em concreto. Lembro-me do caso de uma mocinha. Quase à morte foi levada para um hospital que a socorreu e comunicou depois o fato à Justiça. O Promotor, no cumprimento do seu dever, formulou denúncia que recebi. Designei interrogatório. Então, pela primeira vez, eu me defrontei com o rosto sofrido da mocinha. Aquele rosto me enterneceu mas não havia ainda nos autos elementos para uma decisão. Designei audiência e as testemunhas me informaram que a acusada tinha o costume de toda noite embalar um berço vazio como se no berço houvesse uma criança. No mesmo instante percebi o que estava ocorrendo. Nem sumário de defesa seria necessário. Disse a ela, chamando-a pelo nome: “Madalena (nome fictício), você é muito jovem. Sua vida não acabou. Essa criança, que estava no seu ventre, não existe mais. Você pode conceber outra criança que alegre sua vida. Eu vou absolvê-la mas você vai prometer não mais embalar um berço vazio como se no berço estivesse a criança que permanece no seu coração. Eu nunca tive um caso igual o seu. Esse gesto de embalar o berço mostra que você tem uma alma linda, generosa, santa. Você está livre, vá em paz. Que Deus a abençoe.” A decisão nestes termos, em nível de diálogo, foi dada naquele momento. (Diga-se de passagem que o Juiz deve chamar os acusados pelo nome). Depois redigi a sentença no estilo jurídico, que exige técnica e argumentação.

João Baptista Herkenhoff, 76 anos, Juiz de Direito aposentado, é Supervisor Pedagógico da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo. Autor do livro Como aplicar o Direito (Editora Forense, Rio de Janeiro).