quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Caro colunista de “Victor Hugo”, de A Gazeta,

                        Gilvan Vitorino C. S.
Em sua coluna, dia 23 de outubro de 2011, você mostrou o problema da conta que não fecha – “Haja cadeia para tanto preso no Estado”. Trata-se de importante problema que precisa urgentemente ser enfrentado.
Em seguida, no mesmo dia, em “Efeito do tráfico”, você enceta que o aumento do número de pessoas presas, chegando a 1/3 dos detentos, poderia ser atribuído ao tráfico de drogas.
Em setembro, conforme o Relatório da SEJUS (disponível em www.sejus.es.gov.br), havia 32,34% de presos por tráfico e associação para o tráfico (art. 33 e art. 35 da Lei 11.343/2006). De fato, próximo de 1/3 como você escreveu.
Todavia, esses números podem esconder algo muito importante.
A Lei 11.343/2006 descriminalizou a conduta do uso da droga. Pelo seu art. 28, ela prescreve:
Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
[...]
§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
[...]

Ora, como devem proceder as autoridades que servem no trabalho de persecução penal – policiais, promotores, juízes, etc – para aferir se a conduta é de uso ou de tráfico de drogas?
Veja o parágrafo 2° da lei acima, estimado colunista: ele prescreve a maneira de fazer-se a distinção. Segundo o prescrito, “o juiz [mas, também, o policial, o promotor, etc] atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.
Então, diante do que prescreve a Lei de drogas, temos que levar em consideração algo frequentemente desprezado: trata-se mais de um problema de criminalização do que de criminalidade. Ora, o uso de drogas já não é mais crime!
Mas, o que tem acontecido?
Dependendo do bairro onde é feita a abordagem policial, da escolaridade do indivíduo abordado, da cor da sua pele, da qualidade da sua vestimenta, da sua linguagem, dependendo de muitos fatores de valoração demasiadamente subjetiva, tratar-se-á de um usuário de droga ou de um traficante.
Então, uma parte (embora não seja possível dizer quanto) do contingente preso por tráfico ou associação para o tráfico é, na verdade, de usuários de droga. E, sendo usuários, nem sequer poderiam ser presos!
Estimado Leonel Ximenes,
Um fato que presenciei em Cachoeiro de Itapemirim, o qual narrei em texto postado no Blog www.porummundosemprisoes.blogspot.com, ilustra bem o que escrevo:
O ambiente de uma Delegacia de Polícia é sempre tenso.
[...]
De quinta a sexta feira, passadas, estivemos em Cachoeiro de Itapemirim.
[...]
Na quinta, depois de uma boa reunião com os companheiros daquele município, fomos à Delegacia de Polícia. Subíamos para a carceragem quando ouvi gritos vindos lá de baixo. Logo na entrada, há uma ante sala que fica entre duas celas. Ali se fazia a revista de um preso, não sei por qual motivo, negro.
Eram gritos violentos, com xingamentos...
Desci.
Fiquei ao lado da porta.
Lá dentro, dois policiais civis terminavam o procedimento (o legal e o ilegal).
Fora, já aguardando há não sei quanto tempo, havia duas jovens: rosto de frente para a parede, em pé.  Logo vi um cabo da Polícia Militar dizer que elas haviam sido presas porque uma delas estava com 02 pedras de crack e 60 Reais, enquanto a outra cometera o “crime” de estar com a colega de programa (pois foi isso que elas disseram que faziam: além de viciadas em crack, faziam “programas”).
02 pedras e 60 Reais.
Como é que aqueles policiais presumiram que aquelas jovens eram traficantes? Trata-se de uma incriminação comum por aí... Até mesmo a Lei 11.343/2006 – Lei anti drogas – em seu art. 28, §2°, lamentavelmente, dá azo para que seleção discriminatória como esta aconteça. Diz o texto legal:
Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Ora, então, o problema não é o que se faz com a droga (se é usada ou traficada), mas quem e onde faz!
02 pedras!
                        [...]
Então, meu caro colunista, muitas vezes nos referimos àqueles que estão presos segundo o que entendemos sobre criminalidade, quando, na verdade, trata-se de um fenômeno de criminalização, ou incriminação, seguindo o conceito utilizado por Michel Misse.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O vendedor de amendoim

                                       João Baptista Herkenhoff

A Gazeta, de Vitória, registrou que o menino Diogo Estevam Wesley, de 13 anos, foi o ganhador do concurso nacional “Causos do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)”, promovido pela Agência de Notícias “Direitos da Infância”, com apoio da Fundação Telefônica. 

A história premiada foi “O ex-vendedor de amendoim”. Começa com este parágrafo:

“Meu nome é Wesley e essa é minha história. Nasci numa família de poucas condições e não tinha pai vivo desde os 3 anos de idade. Aliás, nem bem o direito de saber o que aconteceu com ele eu tive. O que sei é que foi assassinado, que eu tinha somente minha mãe e cinco irmãos, e por isso não tive uma infância como a das outras crianças, que podem brincar, ter muitos amigos e situações melhores do que a minha.

Aos 10 anos de idade, não sabia o que era brincar, tinha de ajudar minha mãe a vender amendoim em uma praia a fim de conseguir dinheiro para o sustento dos meus irmãos mais novos do que eu. Essa situação me deixava muito envergonhado, pois observava outras crianças brincando e eu não podia brincar também.”

Vejamos como termina a história deste menino:

“Hoje muita coisa mudou, acredito mais em mim, o que antes não ocorria porque sempre me diziam que eu fazia tudo errado. Sei que sou capaz de muitas coisas, estou me desenvolvendo bem na escola. Já fiz música, apresentação de dança, estou me relacionando bem com meus colegas e até aprendi a brincar.

Foi assim que minha história ocorreu até aqui. E, dando continuidade a ela, me convidaram para escrevê-la para vocês, encerrando assim um capítulo de muitos outros alegres que vou continuar a escrever na vida real.”

No miolo da história, Diogo Wesley narra ainda que saiu da casa de sua Mãe e passou a morar com sua tia Penha, em Colatina. A tia acolheu o sobrinho, matriculou o menino numa escola pública próxima de sua casa e o inscreveu no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Lá Diogo veio a participar da Oficina de Esporte e do Programa Brincando e Aprendendo.

Confesso que, ao ler a reportagem e o texto de Diogo Wesley, lágrimas rolaram de meus olhos. Homem não chora por medo, homem não chora diante da morte. Parmanece válido o anátema de Gonçalves Dias: “Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és!”

O homem que não chora à face do perigo, segundo os versos do poeta maranhense que morreu num naufrágio pouco antes de aportar na sua terra natal, chora diante da grandeza ética, vai às lágrimas pela emoção.

A notícia de A Gazeta disse ainda que é sonho de Diogo estudar Medicina.

Que empresa terá a glória de conceder uma bolsa de estudos para fazer deste menino um médico?

Através de A Gazeta será possível localizá-lo e oferecer-lhe essa oportunidade.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado aposentado, é professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo, palestrante e escritor. Autor do livro: Filosofia do Direito (GZ Editora, Rio de Janeiro).


É livre a publicação deste texto, por qualquer veículo, independente de autorização do autor, pois que esta autorização já fica de antemão concedida.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Excerto de entrevista com Vera Malaguti Batista

                          Disponível em: http://amaivos.uol.com.br
“Temos que apostar em maneiras de tirar gente da prisão, de soltar pessoas. Prender menos, soltar gente que está presa, trabalhar e tratar melhor as pontes de comunicação da população carcerária com seus familiares e com o mundo de fora da prisão ao invés de apostar no corte das comunicações. Apostar em mais comunicação, tratamento mais digno, mais garantias, mais acesso à defesa. A Defensoria Pública de São Paulo foi criada há pouquíssimo tempo, a maioria desses presos não tem acesso à defesa, o que é direito deles. Também temos que inventar papéis mais bonitos, mais dignos para as nossas forças policiais que não seja o de ser o exterminador e o caçador de pobres e por último barrar, trabalhar em reformas legais na direção contraria de aumento de penas, na direção de mais garantia, menos penalização”.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Memórias e Libertação

                Arcelina Helena Públio Dias

(Nota: este texto foi enviado pela autora para publicação neste blog. Trata-se do prólogo de um livro ainda não publicado.)

Gente simples, fazendo coisas pequenas
 em lugares sem importância,
consegue mudanças extraordinárias.

Dom Moacyr Grechi, bispo de Porto Velho,
 XII Intereclesial em Porto Velho, Rondônia, 2009


De 1977 a 2001, em sete cidades da Prelazia de São Félix do Araguaia, no norte do Mato Grosso, oito igrejas e um memorial tiveram suas paredes pintadas com temas que falam do Reino de Deus e da luta do povo pelo direito à vida, à terra e à justiça. O mentor da ideia de preservar a história por meio de enormes murais foi do primeiro bispo da Prelazia, Dom Pedro Casaldáliga. Esse espanhol da Catalunha chegou ao povoado de São Félix em 1968, em plena ditadura militar. Dom Pedro enfrentou militares e grandes grileiros com instrumentos inspirados no Concílio Vaticano II e na Teologia da Libertação. A beleza e a força dos vitrais das centenárias catedrais da Europa, que fazem a memória da história da Salvação, também tocaram a sua alma de poeta.
 Maximino Cerezo Barredo, sacerdote e artista plástico, reconhecido nos cinco continentes com obras espalhadas com obras espalhadas pelos cinco continentes, em sete estados brasileiros e em quase todos os países da América Latina,  aceitou o desafio proposto por Dom Pedro. O bispo e o padre são da mesma congregação dos claretianos e já haviam trabalhado juntos na Espanha, na revista Iris. Maximino esteve na Prelazia dezenas de vezes ao longo desses 24 anos. Em pequenas e modestas igrejas das jovens cidades com poucos habitantes, majoritariamente pobres, Cerezo Barredo materializou nos murais o rosto dos povos e das culturas, suas lutas e suas vidas movidas pela fé no Deus dos pobres. Ele produziu também mosaicos na parte externa das igrejas.
Em 2004, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) tombou o conjunto dos 11 murais com o mesmo objetivo de preservar não só as obras de arte, mas também a história pouco conhecida desse povo que desbravou Brasil central. O encaminhamento para o tombamento dos murais foi uma das primeiras iniciativas do bispo Dom Leonardo Ulrich, que substituiu Dom Pedro neste mesmo ano de 2004: “O tombamento garante a preservação das obras e proporciona ganhos para região e consequente aumento do fluxo de pesquisadores e turistas”.
               “O povo sem memória não merece viver”, afirma Casaldáliga, hoje com 80 anos, em São Félix do Araguaia, onde continua morando na condição de bispo emérito da Prelazia. Ele já decidiu que será enterrado no abandonado cemitério Karajá, à beira do Araguaia, “pois ali estão muitos índios desconhecidos que perderam a vida na defesa da Terra”.

Nós somos aquilo que amamos,
 o que fazemos e o que sonhamos...
Somos teimosamente sonhadores, continua o bispo poeta.
 
A Unesco reconhece que o patrimônio cultural imaterial, transmitido de geração em geração e constantemente recriado pela comunidade, dá sentido de identidade. O Decreto 3551, de 2000, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como patrimônio cultural brasileiro.
Há dois mil anos, Jesus de Nazaré – quando provocado por fariseus exigindo que ele mandasse o povo se calar – replicou: “Se eles se calarem, as pedras gritarão!” (Lucas 19,40).  No seu seguimento, os apóstolos Pedro e João responderam às autoridades dos judeus que os ordenavam não mais falar sobre o Mestre Jesus e suas obras: “Não podemos nos calar sobre tudo o que vimos e ouvimos” (Atos 4,20).
Na América Latina, manifestações culturais visando a preservação da memória da luta do povo durante os anos de ditadura são uma constante. A cineasta Carmem Castilho Echeverria, do Chile, que assistiu horrorizada queima de livros pela polícia de seu país, foi premiada pelo seu filme El tesoro de América - El oro de Pascua Luma. Convicta de que “os olhos sem memória não veem nada”,  ela relembra a luta que seu povo iniciou pela ocupação da terra, em 1971, espontaneamente, todos movidos pela fome: “Mas, eu não tive direito à existência até que me organizei”, explica. Na Prelazia, ouvi depoimentos em diferentes cidades durante esta peregrinação de pessoas que viveram processos muito semelhantes. Algumas, principalmente as mulheres, transformaram suas experiências de vida em monografias para conclusão de cursos universitários.
Pedro Casaldáliga e seus colaboradores foram motores na organização do povo.  Ele continua insistindo na importância da preservação da memória. Na última peregrinação ao Memorial da América Latina, em Ribeirão Cascalheira, em julho de 2011, com voz débil, reafirmou suas certezas: “Não se esqueçam dos nossos pobres... O desânimo também é pecado, não podemos desanimar... Lembrar é combater... Esquecer é permitir”.
 Nos Estados Unidos, Martin Luther King afirmou: “O que me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem ética. O que mais me preocupa é o silêncio dos bons”.
Quando me aposentei como jornalista e professora da Universidade de Brasília, fui morar na cidade de Goiás, movida pelo encantamento que me levou a conversão à radicalidade do Evangelho de Jesus e ao jeito de ser Igreja proposto pelo Mosteiro da Anunciação. Era o último ano do século XX, e no ano 2000 celebrava-se o Jubileu. Esse costume, inspirado nos textos bíblicos do Primeiro Testamento, repete-se a cada 50 anos. A Igreja Católica animava seus fiéis a peregrinar às grandes catedrais e aos lugares sagrados. Ao instalar-me na periferia da pequena cidade de Goiás, eu havia feito minha opção fundamental pelos pobres. Mas continuava jornalista. Por isso, decidi peregrinar no meio dos pobres e sofredores, onde eu acredito encontrar Jesus, o Nazareno, que nasceu de uma mulher pobre e morreu crucificado. Em 1999, dei início ao projeto de realizar cinco peregrinações pelos cinco continentes para escrever cinco livros, ao longo de 500 dias. Eu apenas dava os primeiros passos para entender o Reino de Deus pelos olhos da Teologia da Libertação.
O Concílio Vaticano II deixou muitas heranças que continuam a iluminar o caminho de muitos cristãos e a fortalecer teólogos, sacerdotes, leigos e leigas que vivem a sua Fé segundo a Teologia da Libertação. Para o teólogo e sacerdote Pablo Bonavia, duas são as principais heranças: "Fazer teologia é ler os sinais dos tempos, através da ação do Espírito. O povo de Deus é sujeito do fazer teológico e eclesial. Todos e todas, leigos e leigas, temos o mesmo carisma profético.  A ‘hermenêutica dos pobres’ nos ensina que há coisas no mundo que só se veem a partir da perspectiva dos excluídos".
 No primeiro livro de peregrinações, Sinais de Esperança, conheci os excluídos das três Américas – os sem teto dos Estados Unidos, os meninos de rua da Colômbia, os desempregados do México, que se arriscavam a viver sem documentos atravessando o Rio Grande, entre outros sofredores. Na segunda peregrinação à África e ao Oriente Próximo, convivi com os pobres, os sem paz, os sem pátria, os condenados a morrer de fome ou de AIDs, entre outras doenças. Escrevi Perdão, África, perdão! Em 2006, fui para a Europa peregrinar pelos mosteiros das diferentes igrejas e religiões. Entre monges e monjas que optaram pela autoexclusão do mundo, dedicando-se às orações, meditações e práticas de uma vida simples, longe do consumismo e dos agitos do nosso século, aprendi soluções simples para os problemas que criamos. Escrevi Além do Silêncio.
A presente peregrinação ao coração do Brasil durou 70 dias, no segundo semestre de 2010. Guiada pelos murais de Cerezo Barredo, mergulhei num mundo distante das realidades transmitidas pelos meios de comunicação. Pela força de seus traços e da trama dos personagens bíblicos e populares dos murais, encontrei o povo. O povo, os pioneiros, os índios, os que se organizaram em sindicatos e partidos políticos, os bem mais velhos e também os jovens que enfrentam novos problemas foram minhas fontes de informação.
Como sempre nas peregrinações, procurava entender a realidade iluminada pela espiritualidade dos tempos bíblicos e pela sabedoria acumulada pelos povos. Com profundo respeito por tudo e todos, assim como Abraão que conduziu o seu povo durante 40 anos no deserto. Deus lhe disse (Êxodo 3,5): “Tira teus sapatos dos pés porque a terra que você está pisando é sagrada”.  Assim eu pisei na terra sagrada e abençoada da Prelazia de São Félix.
Em cada uma das cidades, encontrei semelhanças, vividas e contadas por diferentes pessoas. E também histórias que transformaram essas vivências semelhantes em realidades únicas que não podem ser esquecidas. Ou seja, os saberes, enraizados no cotidiano das comunidades, as celebrações, as festas, o trabalho em mutirão, as diferentes formas de expressões e os lugares onde se reproduzem essas práticas culturais coletivas – as ruas, praças, mercados, santuários.  Com imenso cuidado,     segui cada passo ao peregrinar e cada palavra ao redigir este livro.

Pelas mãos de Cerezo

O martírio é um tema forte na Prelazia. São milhares de índios massacrados, caboclos anônimos resistindo pela terra e lideranças organizando o povo para as lutas.  O martírio tem sido, também na minha vida, um pensamento recorrente desde a infância. Quando me preparava para a primeira comunhão, encantava-me a ideia de que o batismo de sangue me levaria, como um foguete, para os braços de Jesus. Sem passagem pelo Purgatório, que me horrorizava.
Para partir peregrinando, reparo a mala com pouca roupa e muitos apetrechos: um laptop velho e pesado, câmera fotográfica e gravador digitais novos, celular velho, cadernos de contato e roteiros, documentos. Cuido de deixar a casa do Menino Jesus, onde moro desde que cheguei a Goiás, em 1999, e o Jardim da Transfiguração, de preservação ambiental, em mãos amigas. Vou me despedindo de amigos e das amigas e administrando as saudades. Junto com tudo isso, o sonho da infância e a ideia de uma despedida definitiva. Não temo a morte, nem a desejo. Mas me observo pensando nela com ternura. E o martírio? Para ser sincera, não me sinto merecedora. Nesta peregrinação desejo confirmar a razão da minha vida: a fé no Reino de Deus, na justiça e no respeito às diversidades, na paz, na solidariedade aos sofredores e na coragem da entrega total para deixar-me morrer quando chegar a minha hora. Seja lá como e quando for.
Como nas demais peregrinações, antes da partida, recebo a Bênção do Envio. Pensei realizá-la na Catedral de Goiás, onde há cinco enormes painéis de Cerezo Barredo. Mas os anjos me levaram por outro caminho. A presença das pessoas simples da nossa comunidade de base “Evangelho é Vida” são, para mim, de grande importância. Às quintas-feiras nos reunimos nas casas de diferentes famílias da comunidade para rezar, meditar o evangelho e partilhar as nossas vidas. Não foi difícil conseguir para aquela quinta-feira, 12 de agosto de 2010, antevéspera da minha partida, que o nosso encontro fosse na “Casinha do Menino Jesus”.
Dom Eugênio Rixen, nosso bispo, com a agenda sempre tão cheia, também estava disponível para aquela data. Data e local definidos para a bênção, passei a me ocupar das flores na Capelinha do Menino Jesus, no quintal de casa, e do texto do evangelho que iríamos meditar. Pedi à vizinha Domingas que me ajudasse, não para fazer bolo de arroz – sua especialidade –, a receber as pessoas. Um bolo já estava encomendado para comemorar meu aniversário e dos demais da comunidade que nasceram em agosto. Eu e Eliane nascemos, em anos bem distintos, no mesmo 25 de agosto, e Mário, no dia 29. Chamei também a Ivonete, amiga do grupo Fé e Luz – que reúne pessoas com necessidades especiais e suas famílias. Ela também é de agosto. O bolo de chocolate  foi feito pela doceira Francisca, esposa da Ivorné, que concluíra sua passagem pela Chácara de Recuperação.
Ao final do nosso encontro, Dom Eugênio me chamou ao centro e, frente ao Santíssimo, deu-me a Bênção do Envio. Também recebi alegres bênçãos das pessoas que lotaram a capelinha. Entre elas, duas italianas que sempre nos visitam: Nádia, que nos acompanhou na excursão a São Félix em 2008, e Sônia, do projeto italiano Módena Terço Mundo. É costume da nossa comunidade terminar os encontros cantando “Esta casa será abençoada”, batendo palmas animadamente, para alegria das crianças, e enviando com os braços uma boa energia para os quatro cantos da casa. A canção vai se repetindo várias vezes para abençoar as famílias, as crianças, os vizinhos, as visitas... Fui dormir sentindo-me realmente uma pessoa abençoada em poder realizar mais essa peregrinação.
Parti no sábado, 14 de agosto, às 8h30, em direção à Barra do Garça, onde o Araguaia recebe as águas do rio Garça. O simples olhar pela janela do caudaloso Araguaia, rio que me acompanharia ao longo dessa peregrinação, emocionou-me. À Barra, cheguei às 14h30. Eu deveria pegar outro ônibus às 21h30 para São Félix, o primeiro destino da peregrinação. Devido às muitas paradas, só chegaria no domingo, às 9h30, a tempo de me instalar e participar do último dia da festa da padroeira, Nossa Senhora da Assunção.
Passei esse longo intervalo de tempo entre um ônibus e outro na casa das irmãs claretianas. Eu sabia que na singela capela da casa encontraria um mural pintado por Cerezo. Mas não contava em encontrar uma amiga entre as claretianas: a irmã Cida, companheira de Estudo Bíblico da IX Turma do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos). Ela morou dez anos em São José do Xingu e me deu muitas dicas e informações sobre essa cidade, parte do meu roteiro.
Bolo de milho bem quente e cafezinho me esperavam. Depois, na capela, demorei-me em oração. O mural do Cerezo ocupa todo o espaço da parede do altar, envolvendo o sacrário.  Do lado esquerdo, Jesus tem, a seus pés, duas irmãs, vestidas como as mulheres do povo, levando cestas com os dois peixes e os cinco pães. No alto, a frase que diz respeito à missão das claretianas: “Dos pés de Jesus saí para evangelizar os pobres”. E do lado direito, homens, mulheres, crianças do povo, com características de negros, brancos e índios, suas enxadas e uma panela vazia, como se esperassem a multiplicação dos pães e peixes (Mateus 14). A frase escrita no alto completa a proposta claretiana: “E voltai para fortalecer o Espírito”. No centro do mural no alto, o Espírito Santo na forma de pomba, sobre o sacrário envolto em uma colorida mandala de temática indígena. Dois temas – a pomba e a arte indígena – que encontraria praticamente em todos os murais de Cerezo Barredo.   
Eu estava feliz. As irmãs saíram para os seus afazeres, e eu aproveitei para ir até a margem do rio Araguaia, bem perto dali. Uma arara-azul me chamou a atenção com fortes grunhidos e voou até um cajueiro repleto de enormes frutos vermelhos. E ficou ali esperando a minha foto colorida.
No porto do Baé, assisti ao pôr do sol, com voo de garças, pombas, andorinhas e gaivotas. Cachorros nadavam na margem à minha frente. Do outro lado do rio, veranistas aproveitavam os últimos raios de sol, ao lado de barracas armadas na areia e dentro da água. Passavam alguns barcos, e tive direito até a um show de jet ski. Os carros estacionados nas proximidades das lanchonetes, com chapas de diferentes estados, mostravam que essa cidade cumpre bem a sua vocação turística.


Arcelina Helena Publio Dias, jornalista desde 1968, trabalhou no Jornal do Brasil e no Estado de S. Paulo. Durante 11 anos foi diretora e editora do Jornal do DIAP - Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar.
Como professora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, lecionou jornalismo sindical e comunitário. É autora de "Sinais de Esperança", editado pela Vozes, em 2001, onde relata a primeira peregrinação entre os excluídos das três Américas; e de "Crônica do Salário Mínimo", editado pela Record, em 1995, onde num testemunho-reportagem relata sua experiência de viver com um salário mínimo na periferia de Belo Horizonte. (informações obtidas de http://diariovilaboense4.blogspot.com/search/label/Arcelina%20Helena%20Publio%20Dias )








segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Humanização do Sistema Penal

                            Clesio de Luca – Agente da pastoral carcerária, de Florianópolis - SC.
Ao fazermos nossas visitas aos presos do sistema carcerário ou penitenciário, constatamos que eles, os presos, são pessoas de origens diferentes. Eles vêm de localidades distantes cada uma delas com seus hábitos e costumes diferentes. Em geral a escolaridade é baixa, alguns deles ligados ao trabalho da roça, e mesmo sem ocupação alguma. Aqui se quer a unidade na diversidade para dar uma  definição clássica.
Caracteriza-se assim como uma miscigenação de raças. Aos nossos administradores penais cremos ser uma constante, na sua atividade, deparar com essas questões o que é natural, todavia perguntamos o que é feito para uma divisão de características pessoais de origem? 
Cada um deles com suas origens, fazendo do presídio agora um lugar comum. Um fato que impressiona ao observador social é a falta de privacidade deles. O sistema a meu ver deveria oferecer, mesmo se tratando de uma regalia incomum a presos, dar de vez em quando a oportunidade de um isolamento voluntário. 
Certo que a ressocialização de detentos avançaria se as unidades prisionais tivessem espaço e atividades bem aproveitadas condizentes com a sua situação e necessidade. Para se ter com eles laços sociais mais abrangentes, ligados pelo trabalho ou a um oficio de aprendizado, ou a espaços de leitura e estudo, tudo coordenado  e dirigido por especialistas, de olho na socialização dos apenados, sendo ou não julgados (provisórios).
É o que fazem os/as nossas professoras do ensino pré-primário. Estes agora adultos desencaminhados e descamisados. Uma boa dose de ternura e carinho dispensado por professores especializados, psicólogos, cientistas sociais e também por sacerdotes, já que eles sabem e conhecem a misericórdia divina e alem do mais têm o poder de perdoar pecados. Os presos os respeitam.
 Também requer registros do individuo - nome, matricula, local de origem, ocupação... ressaltando as particularidades pessoais deles. Anotações da assimilação dos textos e dos avanços e é claro das dificuldades surgidas. Não sei se o PEC contempla isso.
Quanto ao tratamento entre condenados e os agentes prisionais, a direção da unidade, igrejas, associações, a meu ver deveriam ocorrer sem a menor hostilidade. Em geral não há. Apenas uns indivíduos se isolam como se aquela reunião não lhes dissesse respeito. Isso precisa ser corrigido. Talvez o afastamento apenas se deva pelo fato da pessoa ser tímida e o encontro destituído de uma boa programação.
Claro que a coordenação dessas reuniões deveria privilegiar pessoas de talento, com carisma, para que todos pudessem colaborar usufruindo momentos bons em suas vidas, e assim fazer surgir novos caminhos de reconciliação humana, escolha de interesses, grupos menores e outros maiores e especiais. Juntos na jornada com os seus familiares e amigos, numa esperada ou inesperada transformação. Talvez os mais atingidos mesmo sejam os familiares, nesse processo, mas já é um passo! 
À administração prisional caberia valorizar o recluso como pessoa humana independente do grau de sua formação e mesmo de raça que pertence e quanto aos crimes? Isso já se torna uma anomalia à parte. Lembramo-nos de que somos homens imperfeitos, alguns até levados para lá por engano ou vitima de qualquer armadilha, e mesmo por crueldade. Não sejamos ingênuos. Porém todos de igual modo têm seus valores.
Penso que para humanizar o sistema prisional deveríamos fazer um grande mutirão, uma grande meta a ser perseguida, acolhendo toda a ajuda da sociedade civil, militares... dos políticos e do judiciário especialmente.Cada um de nós poderia oferecer uma parte de seu tempo, dando a sua contribuição, enquanto temos força, saúde, disposição e tempo. Não tenho dúvida que a sociedade ganharia com tais medidas oferecendo oportunidade de ajuda aos cidadãos que queiram colaborar. 
Ao acionarmos o dispositivo para esse aparato humano, não poderíamos deixar faltar a participação dos profissionais da imprensa, os liberais da comunicação, os que quisessem se dispor a ajudar e a pensar, ou em participar desta ação conjunta, sem aquele ranço muito comum de achar que todo esse contingente se refere a “bandidos” e a criminosos, como é comum.
Vamos reconhecer também que o preconceito de raça e de cor, e mesmo de credos, estes especialmente “brutais”, acontecem.
A palavra apropriada seria gratidão dos que se dispusessem a ajudar nessa missão e aos  colaboradores não lhes faltará agrados e o reconhecimento público, da sua tentativa,  da sua boa iniciativa e investida nessas ações.Agradecemos desde já seu interesse.
Lembramos que tal assunto deveria ser lembrado e os convites reforçados por ocasião  das reuniões mensais realizadas, com convite aos representantes de todos os grupos citados.
O texto da carta de São Paulo a 1 Coríntios, cap. 13... "a caridade é paciente, prestativa, não se ostenta, não se enche de orgulho..." dá o rumo desejado para alcançarmos esse nobre objetivo. E ficamos esperamos a sua, a nossa resposta para uma maior humanização do sistema prisional brasileiro.

domingo, 16 de outubro de 2011

Filosofia, algo distante ou próximo?

João Baptista Herkenhoff
Talvez a primeira resposta, quase instintiva, à pergunta proposta pelo título deste artigo, consiste em dizer que a Filosofia é algo distante do universo das pessoas comuns.
Será correta esta primeira percepção?
A meu ver, essa percepção está equivocada.
A Filosofia não é alguma coisa distante, que só interessa a uma grei de iniciados. Muito pelo contrário, a Filosofia faz parte de nossa vida.
Se a Filosofia fosse alguma coisa remota, quase localizada na mansão dos deuses, qualquer escrito tratando de Filosofia deveria estar localizado num espaço restrito, cuja chave estaria guardada num esconderijo secretíssimo.
Como a Filosofia faz parte do cotidiano das pessoas comuns, esta reflexão está bem colocada em veículo destinado a uma grande variedade de leitores.
Feito este preâmbulo, continuemos.
Segundo Santo Tomás de Aquino, a Filosofia é a ciência dos primeiros princípios, das primeiras causas”.
Marilena Chauí aponta que a reflexão filosófica, qualquer que seja o domínio a que se dirija, guia-se por três propósitos:Primeiro – investigar o que a coisa é; qual a realidade, a natureza e a significação da coisa;Segundo – como a coisa é, sua estrutura; quais as relações que constituem uma coisa;Terceiro – por que a coisa existe, por que é como é; origem e causa de uma coisa, ideia ou valor.
José Luongo da Silveira observa que a inquietação existencial faz com que o homem nunca se detenha na procura do conhecimento, nunca se satisfaça plenamente com as explicações encontradas:“A sua estrutura cognitiva parece uma alavanca que desencadeia a busca de plenitude, caminhando sempre em direção de novas elaborações racionais numa estrada sem fim. ”
Para Miguel Reale “parece acertado dizer-se que a missão da Filosofia seja receber os resultados das ciências e coordená-los em uma unidade nova.”
Djacir Menezes assinala que a reflexão e a crítica constituem as determinações essenciais do espírito filosófico”.
Oliveiros Litrento vê como objeto da Filosofia “a procura da razão de ser do homem e da vida”.
Existe o substantivo “filosofia” e o verbo “filosofar”. Filosofar é pensar a partir da Filosofia, ou seja, filosofar é pensar com os instrumentos da Filosofia, filosofar é exercitar a reflexão filosófica.A sabedoria latina nos ensina que toda ciência principia pelo significado das palavras: ”omnia scientia a significatione verborum incipit”. Mas a mesma sabedoria clássica adverte para a dificuldade de definir, o perigo de definir: ”omnis definitio periculosa est”.
A palavra “filosofia” resulta da justaposição de dois vocábulos gregos: filos (amigo) e sofia (sabedoria).
A Filosofia é, assim, etimologicamente, o amor à sabedoria, e o filósofo é um amigo da sabedoria.
Segundo Cícero, a palavra filosofia foi criada por Pitágoras. Comparecendo à face de Policrates, tirano de Samos, que lhe indagou a profissão, Pitágoras respondeu que não era um sábio, mas apenas um filósofo, ou seja, um amigo da sabedoria. Segundo ele, a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas os homens podem desejá-la ou amá-la tornando-se filósofos.
Pitágoras estava certo na sua humildade. Na busca da verdade, supôs que o número seria o princípio essencial de que todas as coisas são compostas (Todas as coisas são números). Equivocou-se na tentativa de explicar, por meio da verdade numérica, a globalidade dos fenômenos físicos e humanos. Sua intuição foi posteriormente contestada. Não obstante isso, seu nome permanece inscrito na História do Pensamento (até hoje se estuda, mesmo nas escolas de segundo grau, o teorema de Pitágoras).
Também Platão foi humilde, reconhecendo a limitação do espírito humano, quando escreveu que o filósofo deseja a sabedoria. Ele não disse que o filósofo possui a sabedoria, ou que é detentor da sabedoria, mas apenas deseja a sabedoria.
João Baptista Herkenhoff, Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo, professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor. Autor de: Filosofia do Direito (GZ Editora, Rio, 2010). Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP, 2011).

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Cultura Brasileira

                             João Baptista Herkenhoff
Neste mundo globalizado, neste tempo em que o fato ocorrido no mais remoto rincão da Terra chega instantaneamente ao conhecimento geral, neste nosso tempo, a influência de um povo sobre outro povo, de uma cultura sobre outra cultura é fenômeno que não pode ser evitado. O intercâmbio de experiências é mesmo salutar para o progresso de todos. Não obstante essa realidade, cada país tem o direito de escolher seu caminho.
O país que tem a liderança econômica, política e militar, hodiernamente, tende a praticar um tipo de imperialismo diferente do que foi adotado em outras fases da História. Prefere colonizar culturalmente. Decreta a verdade, as escolhas políticas, econômicas, jurídicas, o modo de pensar, vestir, o lazer, a música nos países que estão sob sua égide.
Creio que a mais eficiente forma de nos defendermos da invasão estrangeira consiste na valorização da Cultura Brasileira. Emprego aqui o termo cultura no sentido sociológico (cultura espiritual), e não na acepção antropológica (cultura material).
Temos sim no Brasil uma Cultura que nos singulariza como povo. Foi à identificação e ao registro dessa cultura que Câmara Cascudo dedicou sua vida. Esse Cascudo que, segundo Carlos Drummond de Andrade, “fez coisas dignas de louvor, em sua contínua investigação de um sentido, uma expressão nacional que nos caracterize e nos fundamente na espécie humana.”
A Cultura Brasileira é a síntese da alma nacional, síntese a que se chega pela soma e fusão de nossas culturas regionais e locais.
Todos os Estados da Federação podem comparecer com seu quinhão de oferta na edificação dessa cultura. Universidades que se espalham pelo território nacional podem todas trazer sua contribuição para a reflexão coletiva. Jornais publicados em todo o nosso espaço geográfico devem ser lidos, rompendo as fronteiras estaduais (hoje inclusive com o auxílio da internet). Livros que vêm à luz ali e aqui, alguns sob a chancela de pequenas editoras, merecem circular amplamente. A jurisprudência dos tribunais e as decisões de primeiro grau, venham de onde vierem, fazem jus a cuidadosa análise. Na televisão é preciso que haja uma maior regionalização dos programas. Mesmo os fatos nacionais devem ser interpretados e discutidos à luz das realidades locais, por jornalistas locais, por pessoas da comunidade.
Essa consciência de que os frutos do espírito brotam de norte a sul do país enriquecerá o cabedal de nossa riqueza cultural e contribuirá para o fortalecimento da nacionalidade.
João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, é professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo, palestrante Brasil afora e escritor. Acaba de publicar o livro Curso de Direitos Humanos (Editora Santuário, Aparecida, SP).

sábado, 8 de outubro de 2011

Fé, Ciência, Democracia

                                  João Baptista Herkenhoff
Não há qualquer incompatibilidade entre Ciência e Religiosidade, nem também entre Religiosidade e Democracia.
Sobre a coerência entre o pensamento científico e as concepções religiosas, já Einstein dava o seu testemunho afirmando que a Religião e a Ciência eram complementares: “a Ciência sem a Religião é manca; a Religião sem a Ciência é cega.
”Max Jammer, que foi colega de Albert Einstein em Princeton, testemunha que este entendia pudesse um cientista ser um homem religioso. A visão de Einstein era de uma perspectiva cósmica, não antropomórfica, de Deus. O caminho científico, diversamente do caminho religioso, é mais abstrato e menos sincrético. No final da trajetória, entretanto, ambos os caminhantes podem ver-se irmanados à face do divino.
Ieda Assumpção Tillmann, Cristina Lopes Horta, Paulo Sousa e Flávio M. de Oliveira, pesquisadores da Universidade Católica de Pelotas, observam que o exame mais detalhado das relações entre religiosidade e condições físicas, psíquicas e sociais do indivíduo só pôde ocorrer depois que a cultura conseguiu desatrelar-se do pensamento positivista, dominante até o século XX. Nas últimas décadas, o processo de emergência de um novo paradigma é que deu sustentação para que, em lugar de distanciamento e desconfiança, surgisse proximidade e interesse recíproco entre religiosos e cientistas.
Andrew Newberg, professor da Universidade da Pensilvânia, evidenciou aumento significativo da atividade cerebral, na região do córtex pré-frontal, durante a meditação, o que é consistente com o processo de atenção focalizada.
Wolfgang Maass, pesquisador de Neurobiologia do Instituto Salk (Estados Unidos), constatou que orações podem ajudar a curar doentes. Preces rezadas, antes das intervenções médicas em pacientes que se submeteriam a angioplastias, trouxeram resultados positivos, formando, assim, um elo entre espiritualidade e saúde.
Quanto à coerência entre Religiosidade e Democracia, só não existe essa coerência dentro de uma visão fundamentalista de Fé.
O Fundamentalismo, ou seja, a pretensão de deter toda a verdade, a intolerância para com o divergente, o carimbo de herege aposto aos que discordam não é monopólio do Islã, como tantas vezes se propala. Também entre os cristãos existem fundamentalistas.
A Religiosidade não é fundamentalista. O Fundamentalismo é, a meu ver, uma corrupção da Religiosidade. A Religiosidade coere perfeitamente com uma concepção democrática de vida e de sociedade.
João Baptista Herkenhoff é Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor. Acaba de lançar Curso de Direitos Humanos, seu quadragésimo segundo livro, que saiu pela Editora Santuário, de Aparecida, SP.
Homepage: www.jbherkenhoff.com.br

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

XIII CONGRESSO MUNDIAL DA PASTORAL CARCERÁRIA (Yaoundé – República de Camarões, de 27-8 a 01-09-2011)

                      Camille Poltroniere Santana
Tivemos a imensa oportunidade de participar do XIII Congresso Mundial da Pastoral Carcerária, o qual acontece de quatro em quatro anos, e esse ano, foi no belo continente africano. Daqui do Brasil fomos em seis pessoas, eu - Camille Poltroniere Santana, do ES -; Pe. Ney Brasil de SC; Manoel Feio do RS; Pe. Valdir João Silveira, José de Jesus Filho e Heidi Ann Cerneka de SP; todos voluntários da Pastoral Carcerária. Ao todo, houve 130 participantes, de 55 países, de cinco continentes.  O tema foi: a Pastoral Carcerária a serviço da reconciliação, da justiça e da paz.



Ao finalizar nosso Congresso adotamos a seguinte Declaração.
Estamos profundamente preocupados com a situação da Justiça Criminal e das Prisões em todo o mundo. Ambas parecem refletir as estruturas injustas que prevalecem em nossa sociedade. Em vários países os governos tratam de responder aos imperantes reclamos por maior segurança da população com o aumento da penas privativas de liberdade e com maior endurecimento das condições prisionais.
Condenamos a pena de morte que persiste em existir em alguns países.
Lamentamos que as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento do Recluso não se cumpram em sua completude.
Observamos que, em geral, as condições atuais de aprisionamento não permitem uma real reabilitação.
Esta situação não somente causa sofrimento aos presos – os quais muitas vezes perdem sua condição de cidadania e os direitos próprios a ela – como também a seus familiares. Adicionalmente, a resposta não respeita a dignidade fundamental de todos os implicados e, ao mesmo tempo, não responde às necessidades das vítimas do crime e da injustiça.
As prisões parecem ser lugares de vingança e não de reforma, porque parecem funcionar sob o preconceito que um preso não pode mais mudar e está condenado a repetir seus atos criminais. Todavia, nossa experiência mostra que a transformação é possível, com o apoio de uma diversidade de programas e de acompanhamento pastoral. Estes nos parecem compatíveis com o sonho de Deus para a humanidade, que não inclua os cárceres na sociedade. Cremos na justiça misericordiosa de Deus.
Cremos firmemente que cada ser humano, sem exceção ou condição alguma, é filho de Deus e, por isso, digno de respeito, mesmo quando ele não respeitou a dignidade dos demais.
Cremos que a sociedade precisa de uma verdadeira Justiça, que se realiza por meio da Reconciliação, cujo fruto é a Paz.
Consideramos que nossa Igreja é a Família de Deus, no seio da qual deveriam prevalecer relações de solidariedade e de preocupação mútuas. É por isso que cremos que a Pastoral Carcerária não poderá se limitar à visita dos presos e presas, mas também deverá lutar por uma sociedade mais justa, assim como pelo bem estar e o respeito de todas as pessoas envolvidas. Deveria se preocupar também com a reforma da Justiça Criminal e do sistema penitenciário, para que possam ser mais eficazes e para que possam respeitar a dignidade de todos. Estamos convencidos de que temos que nos preocupar em primeiro lugar com os últimos, dos menosprezados e dos perdidos, ou seja, dos que são mais vulneráveis: crianças, mulheres, doentes mentais, estrangeiros, etc...
Nós nos comprometemos a realizar as propostas 54 e 55 do II Sínodo dos Bispos Africanos, que se referem ao ministério pastoral nas prisões sobre a prevenção ao crime, e ao aperfeiçoamento dos sistemas de justiça e prisional. Queremos que as prisões sejam lugares onde os homens e as mulheres possam rezar e se reconciliar consigo mesmo, com sua comunidade e com Deus. Isso não será impossível se não prevalecer a justiça e o respeito de sua dignidade e de seus direitos.
Por estar na África nos sentimos reanimados pela instrução do Papa Bento XVI aos bispos africanos a transformar sua teologia em ocasião pastoral. Vemos aí também nossa responsabilidade de apoiar nossos bispos em seu papel tocante ao ministério pastoral nas prisões.
Sentimos que para responder a esses desafios temos que reforçar a organização da Pastoral Carcerária em nossa Igreja, assim como a cooperação com os demais parceiros e instituições de nossa sociedade.
Consideramos que o Ano de Graça que o Senhor Jesus anunciou e que incluía a liberação dos encarcerados (Lc 4,18-19) ainda não se cumpriu. Mas confiamos no amor de Deus e nos colocamos em Suas mãos para que, por meio de nós e por meio de todos os homens e mulheres de boa vontade, possamos trabalhar para realizar a Justiça, a Paz e a Reconciliação que aspiramos.

Camille Poltroniere Santana
Coordenadora Estadual da Pastoral Carcerária do ES
Coordenadora da Pastoral Carcerária da Macro Região Sudeste (ES, MG, SP e RJ)






terça-feira, 4 de outubro de 2011

Auxílio Reclusão - revisado em 18 de maio de 2012


O auxílio-reclusão é um benefício devido aos dependentes  do segurado recolhido à prisão, durante o período em que estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto. Não cabe concessão de auxílio-reclusão aos dependentes do segurado que estiver em livramento condicional ou cumprindo pena em regime aberto.

Para a concessão do benefício, é necessário o cumprimento dos seguintes requisitos:  
1)    o segurado que tiver sido preso não poderá estar recebendo salário da empresa na qual trabalhava, nem estar em gozo de auxílio-doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço;
2)    a reclusão deverá ter ocorrido no prazo de manutenção da qualidade de segurado;
3)    o último salário-de-contribuição do segurado (vigente na data do recolhimento à prisão ou na data do afastamento do trabalho ou cessação das contribuições), tomado em seu valor mensal, deverá ser igual ou inferior ao seguinte valor, independentemente da quantidade de contratos e de atividades exercidas, considerando-se o mês a que se refere: a partir de 15/07/2011, o salário de contribuição, tomado em seu valor mensal, é de R$862,69 (em caso de prisão ocorrida antes dessa data, ver referência para outros meses no endereço eletrônico – sítio – abaixo).


A partir de 1º/1/2012, o valor do salário de contribuição é de  R$ 915,05

Valor do benefício

O valor do auxílio-reclusão corresponderá ao equivalente a 100% do salário-de-benefício.

Na situação acima, o salário-de-benefício corresponderá à média dos 80% maiores salários-de-contribuição do período contributivo, a contar de julho de 1994.

Para o segurado especial (trabalhador rural), o valor do auxílio-reclusão será de um salário-mínimo, se o mesmo não contribuiu facultativamente.
Equipara-se à condição de recolhido à prisão a situação do segurado com idade entre 16 e  18 anos que tenha sido internado em estabelecimento educacional ou congênere, sob custódia do Juizado de Infância e da Juventude.

Após a concessão do benefício, os dependentes devem apresentar à Previdência Social, de três em três meses, atestado de que o trabalhador continua preso, emitido por autoridade competente, sob pena de suspensão do benefício. Esse documento será o atestado de recolhimento do segurado à prisão .

O auxílio reclusão deixará de ser pago, dentre outros motivos:
1)    com a morte do segurado e, nesse caso, o auxílio-reclusão será convertido em pensão por morte;
2)    em caso de fuga, liberdade condicional, transferência para prisão albergue ou cumprimento da pena em regime aberto;
3)    se o segurado passar a receber aposentadoria ou auxílio-doença (os dependentes e o segurado poderão optar pelo benefício mais vantajoso, mediante declaração escrita de ambas as partes);
4)    ao dependente que perder a qualidade (ex: filho ou irmão que se emancipar ou completar 21 anos de idade, salvo se inválido; cessação da invalidez, no caso de dependente inválido, etc);
5)    com o fim da invalidez ou morte do dependente.

Perguntas e respostas frequentes

O que é o auxílio-reclusão?
É um benefício legalmente devido aos dependentes de trabalhadores que contribuem para a Previdência Social. Ele é pago enquanto o segurado estiver preso sob regime fechado ou semi-aberto e não receba qualquer remuneração da empresa para a qual trabalha, nem auxílio doença, aposentadoria ou abono de permanência em serviço. Dependentes do segurado que estiver em livramento condicional ou em regime aberto perdem o direito de receber o benefício.

Esse benefício é pago ao preso?
O segurado preso não recebe qualquer benefício. Ele é pago a seus dependentes legais. O objetivo é garantir a sobrevivência do núcleo familiar, diante da ausência temporária do provedor.

O auxílio-reclusão é proporcional à quantidade de dependentes?
Não. O valor do benefício é dividido entre todos os dependentes legais do segurado. É como se fosse o cálculo de uma pensão. Não aumenta de acordo com a quantidade de filhos que o preso tenha. O que importa é o valor da contribuição que o segurado fez. O benefício é calculado de acordo com a média dos valores de salário de contribuição.

Que princípios norteiam a criação do auxílio?
O princípio é o da proteção à família: se o segurado está preso, impedido de trabalhar, a família tem o direito de receber o benefício para o qual ele contribuiu, pois está dentre a relação de benefícios oferecidos pela Previdência no ato da sua inscrição no sistema. Portanto, o benefício é regido pelo direito que a família tem sobre as contribuições do segurado feitas ao Regime Geral da Previdência Social.

Desde quando ele existe?
O auxílio foi instituído há 50 anos, pelo extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM) e posteriormente pelo também extinto Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários (IAPB), e depois incluído na Lei Orgânica da Previdência Social – LOPS (Lei nº 3.807, de 26 de agosto de 1960). Esse benefício para dependentes de presos de baixa renda foi mantido na Constituição Federal de 1988.

A família do preso pode perder o direito de receber o auxílio?
Sim, desde que o segurado obtenha sua liberdade, fuja ou sua pena progrida para o regime  aberto. Pela legislação, os dependentes têm que apresentar a cada três meses, na Agência da Previdência Social, a declaração do sistema penitenciário atestando a condição de preso do segurado.

Quantos benefícios de auxílio-reclusão são pagos atualmente no país?
De acordo com o Boletim Estatístico da Previdência Social (Beps), o INSS pagou 29.790 benefícios de auxílio-reclusão na folha de janeiro de 2011, em um total de R$ 18.707.376. O valor médio do benefício por família, no período, foi de R$ 627,98.
 
Como solicitar?
O auxílio-reclusão, a exemplo dos demais benefícios da Previdência Social, pode ser solicitado com agendamento prévio, pelo portal da Previdência Social e pela Central 135.

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Todas estas informações foram copiadas do sítio do Ministério da Previdência Social: http://www.previdenciasocial.gov.br/conteudoDinamico.php?id=22.
É importante acessar este sítio, pois há outras informações de grande utilidade para a fruição desse benefício tão esquecido pelos familiares dos presos.
Como se trata de órgao federal aquele que concede o benefício, em caso de necessidade de assistência jurídica – Defensor Público -, deverá ser buscada tal assistência na Defensoria Pública da União.

Defensoria Pública da União no Espírito Santo
Endereço: Rua Odette Braga Furtado, nº 110 -  Bairro Enseada do Suá
CEP: 29.050-345- Vitória/ES
E-mail: dpu.es@dpu.gov.br
Telefones: (0xx27) 3145-5600 / 3145-5607 / 3145-5604 / 3145-5616 / 3145-5610
Defensor Público-Chefe: Dr. Luiz Henrique Miguel Pavan
Defensora Pública-Chefe Substituta: Dra. Aline Felippe Pacheco Sartório