quarta-feira, 31 de agosto de 2011

No outro há também um eu


Gilvan Vitorino C. S.

Meus pais sempre lutaram com muita dificuldade. E coube-lhes, na sua mocidade, já casados (mais mocidade da minha mãe, pois casara-se com 17 anos; menos de meu pai, porque com 28), dificuldade não só financeira, mas, agravada, porque seu primeiro filho nascera com “paralisia cerebral”. Assim, lutar por condições de sustento e amparar um filho com tamanha limitação foi uma rotina na sua vida. E, não bastasse tudo isso, mais três rebentos se somaram à família, todos cujas idades não diferiam de mais de dois anos na ordem de nascimento.

Tal realidade me pôs em contato com uma sorte de atividades e conceitos dos quais eu não poderia mais me afastar. Os filhos, todos homens. Portanto, cedo eu aprendi as atividades do lar: lavar as louças, limpar o chão e cuidar do irmão mais velho – o mais carente – eram atividades comuns para nós. E, muito por isso, aquele conceito de que tais atividades eram exclusivas de mulher, nós, cedo, aprendemos a repudiar.

Rubem Alves tem uma obra, “Conversas sobre Educação”, que seria muito proveitoso se todos pudessem lê-la. Em crônica desta obra intitulada “Carta aos pais”, ele faz um alerta.   

Ele diz assim: “Compreendo, portanto, que vocês [pais] tenham torcido o nariz ao saber que a escola ia adotar uma política estranha: colocar crianças deficientes nas mesmas classes das crianças normais. O seu nariz torcido [o nariz dos pais] disse o seguinte: Não gostamos. Não deveria ser assim!”

E, mais adiante, continua Rubem: “Se é assim que vocês pensam, eu lhes digo: Tratem de mudar sua maneira de pensar rapidamente porque, caso contrário, vocês irão colher frutos muito amargos no futuro. Porque, quer vocês queiram, quer não, o tempo se encarregará de fazê-los deficientes”.

Em seguida, após citar um texto bíblico conhecido (Eclesiastes 12: 1-8), que fala dos anos difíceis que nos esperam a todos, os anos da velhice, anos em que todos nos tornamos carentes, com limitações – principalmente físicas: os olhos já não vêem como antes, os braços já estão fracos, as pernas cambaleiam, os ouvidos já confundem -, um tempo em que se ansiará por atenção dos mais novos, este sábio escritor adverte: “Esqueçam. Os interesses dos netos são outros. Eles não gostam de conviver com deficientes”. E, continuando, enceta:  “Eles não aprenderam a conviver com deficientes. Poderiam ter aprendido na escola, mas não aprenderam porque houve pais que protestaram contra a presença dos deficientes”.

(Em tempo: observe-se que Rubem Alves trata o termo “deficiente” na acepção tomada pelos pais, uma acepção tomada como demérito. Portanto, antes que se critique o autor, veja-se que ele utiliza o mesmo termo no início e fim, para que fique evidente como se constrói um preconceito...)

 Ainda na faculdade, naqueles grupos de estudos e debates na FDV, quando dialogávamos sobre a situação socioeconômica em que vive a maioria da população, eu, freqüentemente, fazia uma advertência: há muitos indivíduos que não conhecem a realidade dura em que vive a maior parte da população brasileira. Aqui na Grande vitória, por exemplo, é possível que várias pessoas não conheçam e nunca venham conhecer tais dificuldades: porque todas as necessidades identificadas pelo indivíduo de condições abastadas podem ser satisfeitas sem contato com os problemas dos “miseráveis”! Ora, as lojas da sua preferência, as melhores escolas particulares, os cinemas, os melhores hospitais, tudo isto está bem perto deles. E tudo bem interligado por boas vias de acesso. Em geral, vão de carro próprio ou de táxi. Os cinemas estão nos “shoppings centers”. Para sair do estado, viajam de avião.

Eu provocava esse debate, não para desconsiderar os que têm tais facilidades, mas para mostrar que sem um contato com a miséria dos miseráveis pode-se viver uma vida sem nenhum incômodo, sem a necessária consciência de que há problemas sérios a serem enfrentados por todos aqueles que acreditam que o ser humano tem dignidade onde quer que ele esteja.

Ora, como saber o que é um esgoto fluindo por uma rua sem um dia ter precisado pular uma valeta para não molhar e sujar os sapatos? Como imaginar a fome sem ver uma despensa vazia, sem ver uma barriga listrada pelas costelas? Como entender o problema fundiário sem visitar um acampamento de trabalhadores ansiando por um pedaço de terra para lavrar? Como saber dos problemas desses menores na rua e dos menores de rua levantando – quase em desespero! –o vidro da janela do carro?   

De alguma forma, mas de outra maneira, não através do que mostra a grande mídia, é preciso que o indivíduo se aproxime do “outro”, distanciando-se, pelo menos por algum momento, de si mesmo, para ver que há mais coisas por aí do que aqueles prazeres que o orbitam.

Quando eu era criancinha, com uns 04 anos de idade, morávamos no município de Baixo Guandu, no norte do Espírito Santo. Nossa casa era vizinha de uma delegacia, muito freqüentemente chamada “cadeia”. Alguma lembrança eu ainda tenho da grade da cela, uma pequena grade como janela, que dava para a lateral do terreno em que morávamos. E, por causa dessa lembrança, alguns dias atrás é que me dei conta de quando eu fui apresentado a esse ser tão desrespeitado, tão ultrajado em seus direitos, tão humilhado, que é o preso.

Foi naquela época. Ele, cujo nome até hoje meu pai não esqueceu, chamava-se Adão, apareceu na minha vida para que pudesse, cedo, saber que dentro de uma cela há sempre um ser tentando sobreviver e que é gente! Veio-me ele para afirmar uma convicção que guardo até hoje: ele era igualzinho a mim: nariz, boca, pernas... Tudo tal como um ser qualquer. Melhor: tudo tal como um ser especial, como somos todos nós (todos, todos especiais: de “braços dados ou não”).

Lembro (e o que esqueço meus pais me socorrem) que nós aprendemos a tratar bem àquele presidiário. Ele dialogava conosco através daquela pequena janela gradeada. Há, por admirável que pareça, uma lembrança de termos recebido do Adão, eu e meus irmãos, uma laranja. Que coração! Ele, preso, solitário, com parcos recursos, quase nada, mas com um coração gigante...

Não faz muitos dias eu disse para alguém que se nossos presídios fossem cercados de acrílico, totalmente transparentes, permitindo ver todo o flagelo por que passam aqueles seres lá dentro, talvez a sociedade interviesse em seu favor e exigisse o cumprimento dos seus direitos, o direito dos presos.

Mas, não ver o que acontece lá dentro, ignorar aquela realidade, faz bem a muitos. Isto é muito semelhante ao que Jesus contou através da parábola do bom samaritano: muitos passavam de largo, porque se eles nem sequer tomassem conhecimento da necessidade daquele que pedia socorro, melhor seria para a sua consciência. Sim, acontece muito conosco: ignorar causa uma paz. Pra que visitar um hospital público? Pra que ouvir o lamento do menor na rua? Pra que saber como estão as unidades de internação de menores? Pra quê?

Todavia, como diz um grande escritor, homem da Sociologia, do Direito e da Teologia, Robinson Cavalcanti, essa ignorância não traz mais do que uma falsa paz, uma falsa paz produzida pela alienação!
   

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

DIREITO PENAL DO AMIGO. POR QUE NÃO?

            Carlos Eduardo Rios do Amaral*
O célebre escritor francês Victor Hugo, em sua obra “Os Miseráveis”, conta-nos (in Os Miseráveis – Wikipédia, a enciclopédia livre) inesquecível e emocionante passagem de seu livro:
“Jean Valjean, tendo servido durante 19 anos nas galés (cinco por roubar um pão para sua irmã e seus sete sobrinhos passando fome, e mais catorze por inúmeras tentativas de fuga) acaba de ser libertado. Valjean é marginalizado por todos que encontra por ser um ex-presidiário, sendo expulso de todas as estalagens. Ele iria dormir na rua, mas é recebido na casa do benevolente Bispo Myriel (conhecido como senhor Benvindo), o Bispo de Digne. Mas em vez de se mostrar grato, rouba-lhe os talheres de prata durante a noite e foge. Logo é preso e levado pelos policiais à presença de Benvindo. O Bispo salva-o alegando que a prata foi um presente e nessa altura dá-lhe dois castiçais de prata também, repreendendo-o por ter saído com tanta pressa que esqueceu essas peças mais valiosas. Após esta demonstração de bondade, o bispo o ‘lembra’ da promessa (que Valjean não tem nenhuma lembrança de ter feito) de usar a prata para tornar-se um homem honesto”.
Rejeitado pela sociedade por ser um ex-presidiário, Bispo Myriel muda a vida do personagem Jean Valjean. Ele assume uma nova identidade para seguir uma vida honesta, tornando-se proprietário de uma fábrica e prefeito. Ele adota e cria uma filha, salva uma pessoa da morte, e morre imaculado com uma idade avançada.
A vida e a solução de suas tormentosas aflições, a desordem e o embate entre indivíduos na sociedade, devem receber solução mais refletida e profilática, do que o encarceramento do ser humano nos porões de suas sombrias masmorras.
Nosso ainda vigente e ultrapassado Código de Processo Penal de 1941, em seus Arts. 386 e 387, bem resumem a que se presta a intervenção judiciária na discussão da infração penal: ou o juiz condena, ou absolve o agente.
Noutras palavras, a lei penal brasileira veda terminantemente outra solução para um processo penal. É vedado ao juiz promover a concórdia, resgatar a dignidade, afagar traumas ou acalentar o marginalizado.
O juiz do processo penal anda em trilhos que o escravizam, que o levam a lugar nenhum. Não deve, pela nossa lei penal, ousar o magistrado a pacificar o conflito com o óbvio e o evidente. Por mais perceptível e sentida que seja a solução da lide, somente lhe é dado aquelas duas malditas alternativas.
A solução pacífica do litígio, a mediação e a conciliação, demais técnicas de composição amigável, são expressões que ressoam como uma blasfêmia à legislação penal, uma heresia ao Direito Penal ainda posto em vigência.
Não! Definitivamente, não! Não deve o magistrado jamais se apiedar, compreender ou se interessar pelas nuances do crime e sua história ou mesmo seu drama mais do que o necessário para a formação de seu “juízo de convencimento”. Afinal, o CPP quer que seu convencimento seja apenas o bastante e suficiente para mandar o agente para o xadrez ou absolvê-lo.
O crime é um fato social que deve ser recortado da vida de seu agente, para se extrair apenas dele uma paisagem contemplativa, aonde nada poderá ser feito pelo outro pedaço de vida que ficou para trás. Deve ser desinteressante ao julgador saber das amarguras e percalços enfrentados pelo acusado antes do cometimento do crime.
A palavra da vítima, se não for para a formação da culpa, também será desimportante para o processo penal. Seus anseios não interessam ao processo penal de hoje. Quer por que se quer, ao arrepio das leis da física, que o Estado seja o verdadeiro lesado pela infração, o chamado “sujeito passivo direto”. O ofendido, mero coadjuvante, deve ser concebido como indiretamente atingido pelo delito.
Interessante notar que quando verdadeiramente atingido o erário, a fazenda pública, a administração pública, o direito penal, aí condescendente, recebe plasticidade e envergadura máximas. O parcelamento e quitação do tributo impedem a deflagração do processo penal, o rombo na previdência social pública pode ser escusado pelo refinanciamento ao seu sonegador. Está certo, são técnicas de encerramento de demandas que mais satisfazem o Estado Democrático, do que a prisão do ser humano.
E assim por diante, como acontece nestes delitos do colarinho branco, deve ser o processo penal para toda a sociedade em geral. A evolução do sistema punitivo estatal deve evoluir, para todos, sem distinção, para contemplar meios e recursos que eficazmente ponham fim às causas e conseqüências da infração penal. A punição exemplar depois de solucionada a falta cometida talvez seja um plus descartável.
O avanço destruidor do “crack” na sociedade e, principalmente, na célula familiar, pode ser citado, talvez, como o maior exemplo de quanto o juiz brasileiro é refém de um sistema processual penal que, definitivamente, não funciona bem. A sentença final, inflexível e indiferente ao sentimento das partes, espera do juiz outra coisa, mais simples, menos heróica.
Não se quer, aqui, abolir a pena privativa de liberdade.
Mas não se pode ter em mente a prisão como primeira e imediata resolução para o crime. Não se pode inocular o mesmo antídoto para doenças diversas. Assim como a aspirina não cura o canceroso, a quimioterapia não é indicada para a dor de dente.
O Direito Penal não pode, em cruel rol taxativo, estabelecer qual a melhor resposta para o crime praticado e suas conseqüências. Pode e deve, sim, estabelecer várias alternativas, rotas de auxílio, atalhos para aplacar as conseqüências da infração e metas a serem alcançadas. Jamais ousar a impor ao magistrado que a primeira e a única opção, a mais reluzente aos seus olhos, deva ser o encarceramento do ser humano.
O Ministério Público e a Defensoria Pública seriam os fiscais do acerto da profilaxia judicial eleita no processo penal. O irresignado poderia se insurgir quanto à solução adotada pelo juiz em cada caso concreto. A opção pela prisão do agente deverá ser a ultima ratio.
A prova dos nove do que diz aqui é muito simples. O que são as prisões hoje no Brasil? Escolas do crime, às vezes com mestrado e doutorado. O condenado entra como um principiante ladrão-de-galinhas e sai como sócio remido de alguma facção ou organização criminosa, com diversas empreitadas já previamente estabelecidas para após sua liberdade. Se não aceitá-las, talvez morra por ser tido como infiel desertor, a mando de seus colegas de cela.
A medicina psiquiátrica, a psicologia, a assistência social, a pedagogia, entre outras tantas ciências complexas e salvíficas, despontam em nosso País, com excelentes e renomados profissionais. Temos que abrir as portas dos fóruns a essa gente dedicada e qualificada, que muitas coisas nos têm a dizer e ensinar.
Assim como o inadequado uso de um antibiótico pode aniquilar seus efeitos para sempre. A prisão, como resposta estatal para o crime, pode, também, para sempre destruir um ser humano, por algo que muito bem poderia ser tratado e curado de outra forma, mas simples e eficaz.
Vamos sair às ruas para colocar todos os vendedores de CD’s piratas e usuários de “crack” na cadeia? Jogar aquele flanelinha suspeito na grade?
Isso vai, sinceramente, resolver alguma coisa?
O legislador deve confiar no Poder Judiciário, confiar na criatividade e experiência dos juízes e tribunais. Autorizar que esses agentes promovam a paz social, por todas as formas possíveis, abrindo um leque infinito de opções para tanto. O rol de penas restritivas de direitos inibe a criatividade dos juízes, não se presta para a infinidade de casos que se apresentam no dia-a-dia, sem falar que são meramente substitutivas.
Enfim, esse é hoje o maior desafio que o Direito Penal deve enfrentar, se quiser estar afinado com a questão da dignidade da pessoa humana. Transformar a sentença penal em instrumento efetivo e concreto de pacificação social, longe de paredões e cadafalsos.
*Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo

domingo, 21 de agosto de 2011

Embora não saia na foto, o coração sente

                          Gilvan Vitorino C. S.
O ambiente de uma Delegacia de Polícia é sempre tenso. Confesso que meus batimentos cardíacos me incomodam quando entro numa delas. Trata-se de um ambiente nada amigável, frequentemente hostil.
De quinta a sexta feira, passadas, estivemos em Cachoeiro de Itapemirim. Foi mais uma das tantas idas às Comarcas que possuem ou estão instalando  Conselhos da Comunidade (o que pode ser chamado – conselho da comunidade-, para evitar muitos termos na definição, de “meio de controle social da execução penal).
Na quinta, depois de uma boa reunião com os companheiros daquele município, fomos à Delegacia de Polícia. Subíamos para a carceragem quando ouvi gritos vindos lá de baixo. Logo na entrada, há uma ante sala que fica entre duas celas. Ali se fazia a revista de um preso, não sei por qual motivo, negro.
Eram gritos violentos, com xingamentos...
Desci.
Fiquei ao lado da porta.
Lá dentro, dois policiais civis terminavam o procedimento (o legal e o ilegal).
Fora, já aguardando há não sei quanto tempo, havia duas jovens: rosto de frente para a parede, em pé.  Logo vi um cabo da Polícia Militar dizer que elas haviam sido presas porque uma delas estava com 02 pedras de crack e 60 Reais, enquanto a outra cometera o “crime” de estar com a colega de programa (pois foi isso que elas disseram que faziam: além de viciadas em crack, faziam “programas”).
02 pedras e 60 Reais.
Como é que aqueles policiais presumiram que aquelas jovens eram traficantes? Trata-se de uma incriminação comum por aí... Até mesmo a Lei 11.343/2006 – Lei anti drogas – em seu art. 28, §2°, lamentavelmente, dá azo para que seleção discriminatória como esta aconteça. Diz o texto legal:
Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Ora, então, o problema não é o que se faz com a droga (se é usada ou traficada), mas quem e onde faz!
02 pedras!
Quanto ao negro que era humilhado, xingado - violentado, portanto -, já nos acostumamos com isto. É como se já tivéssemos criado outra regra: a esculhambação com a pessoa humana (sempre algumas, preferencialmente) é tanta que algumas práticas permitimos, já não nos causam a insatisfação que um dia causaram.
Ora, quanto a isso, digo que devemos resistir a qualquer renúncia. Nada pode ser renunciado, pois não é renunciável.
No sistema prisional, por exemplo: já vimos tanta coisa horrenda que hoje erramos ao aceitar que um preso fique em pé por horas, ou agachado por muito tempo, ou andando como mulas, ou permaneça por muito tempo apoiado somente na ponta dos pés... Segundo o Protocolo de Istambul, tudo isso são “formas de tortura posicional”. Eis o que diz este Protocolo:
Todas as formas de tortura de posição visam directamente os tendões, articulações ou músculos. Existem vários métodos: “suspensão de papagaio”, “posição de banana” ou o clássico “laço banana” sobre uma cadeira ou simplesmente no chão, posição de bicicleta, manutenção da pessoa de pé durante longo tempo, apoiada num ou nos dois pés ou com os braços e mãos esticados para cima contra uma parede, manutenção da pessoa de cócoras durante longo tempo e imobilização forçada numa pequena jaula. (p. 61)

No dia seguinte, sexta feira pela manhã, fomos ao CDP cachoeirense. Nos CDP’s estão (ou deveriam estar) os presos que aguardam julgamento. Reunimo-nos com vários deles para colher relatos das condições em que estão encarcerados. Há naquela unidade prisional presos com até 01 ano e 11 meses de “tranca”. Sabia que são 23 meses sem acesso à atividade sexual, pois nas unidades prisionais desse modelo não se permite a visita íntima?
Um dos presos - que já estava no regime aberto de uma pena em cumprimento, mas que foi novamente preso por uma alegada agressão à esposa – segundo contou, relatou que certo dia chegaram ao presídio 02 policiais civis. Puseram-no numa viatura policial, foram para um local ermo, e foram logo falando com a típica conduta ameaçadora: “e aí, você vai confessar logo ou vai querer se ver com a gente?” Queriam que ele confessasse vários homicídios investigados.
São esses homicídios que precisam ser investigados e precisam que alguém os tenha cometido... Trata-se de prática muito comum por aí. Ninguém melhor para ser criminalizado do que aquele já transformado em pária da sociedade. Ah, já ia me esquecendo de relatar: este preso é negro como a maioria no sistema prisional!
Logo após seu relato, orientei todos eles sobre tal ato ilegal realizado pelos policiais, pois ninguém pode retirar um preso de uma unidade prisonal senão por meio de uma ordem judicial. Depois, ao fim da reunião, fui ao diretor para questionar o ocorrido e orientá-lo para que jamais permita que algo semelhante ocorra, mesmo que seja uma ação perpetrada por policiais.
Mais uma vez ficou demonstrado que, embora o sistema prisional do Espírito Santo possua unidades prisionais que ficam bem na foto, há muita coisa lamentável ocorrendo que, todavia, não pode ser fotografada.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A busca de novos rumos para a execução penal.



In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 18, n. 225, p. 01, ago., 2011.
A execução penal constitui, sem sombra de dúvidas, uma das etapas de maior tensão de toda a dinâmica da intervenção penal. E isso não é de hoje. Desde que se tenta encontrar fins para a pena – e aí se vão alguns séculos de teorias e fórmulas que parecem primar pela artificialidade e pela falta de contato com a realidade – a utilidade da resposta penal tem informado a pauta diária das iniciativas legislativas envolvendo o cumprimento da condenação. Sobretudo a partir de Feuerbach, que viu na ameaça penal um mecanismo eficaz de coação psicológica, e de Von Liszt e Beccaria, com a defesa da prevenção especial positiva (ressocialização), o discurso preventista vem representando o fio condutor desse debate. No Brasil, tal perspectiva está expressamente consignada, desde a década de 80, em dispositivos legais, como o art. 59 do Código Penal e o art. 1º da Lei de Execução Penal.
A Lei nº 12.433, promulgada em 29 de junho desse ano, veio inspirada no ideal ressocializador. A par de eventuais críticas que lhe possam ser dirigidas por reforçar o prevencionismo – meta de alcance sempre indemonstrável – parece ser induvidoso que a admissão do estudo durante a execução, de forma expressa pela lei, como requisito para a remição da pena, é providência que tende a minimizar os efeitos dessocializadores do cárcere. E por uma razão muito simples: ela proporciona, mediante um estímulo positivo para a vida futura do condenado, o abreviamento da pena.
A nova lei alterou quatro artigos da LEP (arts. 126 a 129). Com isso, introduziu, de lege lata, um pressuposto para a remição da pena que já vinha sendo reconhecido pela jurisprudência, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme estabelecido na Súmula 341, segundo a qual “a frequência a curso de ensino formal é causa de remição de parte do tempo de execução de pena sob regime fechado ou semiaberto”. Sem a lei, entretanto, não existiam critérios para a remição em virtude do estudo (nível dos cursos, proporção entre tempo de atividade e dias remidos, hipóteses de revogação etc.), lacuna que entregava ao juiz margem extrema de discricionariedade para decidir. E a excessiva discricionariedade é sempre incompatível com o respeito à igualdade.
Muito bem-vinda, portanto, a definição normativa de aspectos, como, por exemplo, a possibilidade de remição pelo estudo em praticamente todos os níveis educacionais (fundamental, médio, profissionalizante, superior e requalificação profissional), inclusive fora do estabelecimento penal e em virtude de atividades presenciais ou à distância, tanto para a prisão decorrente de condenação quanto para a prisão cautelar, questões que ficavam antes sujeitas a critérios que cada juiz elegia no caso concreto, muitas vezes diversamente, implicando tratamento diferenciado para situações análogas.
Mas é bom ressaltar que alguns pontos da nova disciplina legal merecem reflexão cuidadosa para que garantias fundamentais não venham a ser afetadas pelo rigor de uma interpretação literal. É o que ocorre com a diferenciação de regimes de cumprimento da pena na remição pelo estudo e pelo trabalho. Aquele pode remir a pena executada em qualquer regime (fechado, semiaberto e aberto) ou mesmo durante o livramento condicional. Este só autoriza a remição quando realizado nos regimes fechado e semiaberto. Não há, aparentemente, justificativa para que tenha permanecido a restrição aos dois regimes mais graves na concessão do benefício em razão do trabalho. E dois motivos, pelo menos, recomendariam o contrário. Primeiro, tanto o estudo quanto o trabalho são atividades que proporcionam a minimização dos efeitos dessocializadores do cárcere, em qualquer regime de execução. Segundo, a própria lei admitiu a cumulação entre estudo e trabalho para fins de remição, desde que haja compatibilidade de horários (art. 126, § 3º, da LEP). Não há sentido em admitir a cumulação, porém restringir um dos critérios – o do trabalho – aos regimes mais rigorosos de cumprimento da pena.
A nova lei tem natureza penal e trata de prisão. Sua retroatividade benéfica é, portanto, tema incontroverso. Os condenados que já vinham estudando durante a execução têm direito à remição, calculada com base no período de atividades anterior à entrada em vigor da Lei nº 12.433/11, inclusive em regime aberto ou no curso de livramento condicional. Aqueles que, em virtude de falta grave, perderam todo o tempo remido – conforme estabelecia a antiga redação do art. 127 da LEP – têm direito ao reexame judicial desse período, que só poderá ser revogado, agora, até o limite de 1/3 (um terço). Milhares de condenados podem ser beneficiados por um comprometimento que assumiram antes mesmo que a lei os favorecesse.
Mudanças pressupõem reconsideração de ideias, mas nunca o abandono de princípios. A superação definitiva do paradigma prisional, cujas consequências danosas são, desde sempre, sentidas, depende da escolha de novos rumos para a execução penal, que não incluam lances de criatividade perversa, como os que permitiram a conversão de prisões em verdadeiras jaulas em pleno século XXI. Se, por um lado, o ideal ressocializador é passível de críticas por pressupor, de certa forma, uma submissão do condenado a valores que podem não ser os que ele elegeu, parece ser inquestionável que é, ainda, a meta da reinserção social o que torna o cumprimento da pena menos desumano. E todas as iniciativas legislativas que tenderem à realização dessa meta serão, portanto, bem-vindas.
Disponível em: http://www.ibccrim.org.br/site/boletim/exibir_artigos.php?id=4411