Gilvan Vitorino C. S.
Meus pais sempre lutaram com muita dificuldade. E coube-lhes, na sua mocidade, já casados (mais mocidade da minha mãe, pois casara-se com 17 anos; menos de meu pai, porque com 28), dificuldade não só financeira, mas, agravada, porque seu primeiro filho nascera com “paralisia cerebral”. Assim, lutar por condições de sustento e amparar um filho com tamanha limitação foi uma rotina na sua vida. E, não bastasse tudo isso, mais três rebentos se somaram à família, todos cujas idades não diferiam de mais de dois anos na ordem de nascimento.
Tal realidade me pôs em contato com uma sorte de atividades e conceitos dos quais eu não poderia mais me afastar. Os filhos, todos homens. Portanto, cedo eu aprendi as atividades do lar: lavar as louças, limpar o chão e cuidar do irmão mais velho – o mais carente – eram atividades comuns para nós. E, muito por isso, aquele conceito de que tais atividades eram exclusivas de mulher, nós, cedo, aprendemos a repudiar.
Rubem Alves tem uma obra, “Conversas sobre Educação”, que seria muito proveitoso se todos pudessem lê-la. Em crônica desta obra intitulada “Carta aos pais”, ele faz um alerta.
Ele diz assim: “Compreendo, portanto, que vocês [pais] tenham torcido o nariz ao saber que a escola ia adotar uma política estranha: colocar crianças deficientes nas mesmas classes das crianças normais. O seu nariz torcido [o nariz dos pais] disse o seguinte: Não gostamos. Não deveria ser assim!”
E, mais adiante, continua Rubem: “Se é assim que vocês pensam, eu lhes digo: Tratem de mudar sua maneira de pensar rapidamente porque, caso contrário, vocês irão colher frutos muito amargos no futuro. Porque, quer vocês queiram, quer não, o tempo se encarregará de fazê-los deficientes”.
Em seguida, após citar um texto bíblico conhecido (Eclesiastes 12: 1-8), que fala dos anos difíceis que nos esperam a todos, os anos da velhice, anos em que todos nos tornamos carentes, com limitações – principalmente físicas: os olhos já não vêem como antes, os braços já estão fracos, as pernas cambaleiam, os ouvidos já confundem -, um tempo em que se ansiará por atenção dos mais novos, este sábio escritor adverte: “Esqueçam. Os interesses dos netos são outros. Eles não gostam de conviver com deficientes”. E, continuando, enceta: “Eles não aprenderam a conviver com deficientes. Poderiam ter aprendido na escola, mas não aprenderam porque houve pais que protestaram contra a presença dos deficientes”.
(Em tempo: observe-se que Rubem Alves trata o termo “deficiente” na acepção tomada pelos pais, uma acepção tomada como demérito. Portanto, antes que se critique o autor, veja-se que ele utiliza o mesmo termo no início e fim, para que fique evidente como se constrói um preconceito...)
Ainda na faculdade, naqueles grupos de estudos e debates na FDV, quando dialogávamos sobre a situação socioeconômica em que vive a maioria da população, eu, freqüentemente, fazia uma advertência: há muitos indivíduos que não conhecem a realidade dura em que vive a maior parte da população brasileira. Aqui na Grande vitória, por exemplo, é possível que várias pessoas não conheçam e nunca venham conhecer tais dificuldades: porque todas as necessidades identificadas pelo indivíduo de condições abastadas podem ser satisfeitas sem contato com os problemas dos “miseráveis”! Ora, as lojas da sua preferência, as melhores escolas particulares, os cinemas, os melhores hospitais, tudo isto está bem perto deles. E tudo bem interligado por boas vias de acesso. Em geral, vão de carro próprio ou de táxi. Os cinemas estão nos “shoppings centers”. Para sair do estado, viajam de avião.
Eu provocava esse debate, não para desconsiderar os que têm tais facilidades, mas para mostrar que sem um contato com a miséria dos miseráveis pode-se viver uma vida sem nenhum incômodo, sem a necessária consciência de que há problemas sérios a serem enfrentados por todos aqueles que acreditam que o ser humano tem dignidade onde quer que ele esteja.
Ora, como saber o que é um esgoto fluindo por uma rua sem um dia ter precisado pular uma valeta para não molhar e sujar os sapatos? Como imaginar a fome sem ver uma despensa vazia, sem ver uma barriga listrada pelas costelas? Como entender o problema fundiário sem visitar um acampamento de trabalhadores ansiando por um pedaço de terra para lavrar? Como saber dos problemas desses menores na rua e dos menores de rua levantando – quase em desespero! –o vidro da janela do carro?
De alguma forma, mas de outra maneira, não através do que mostra a grande mídia, é preciso que o indivíduo se aproxime do “outro”, distanciando-se, pelo menos por algum momento, de si mesmo, para ver que há mais coisas por aí do que aqueles prazeres que o orbitam.
Quando eu era criancinha, com uns 04 anos de idade, morávamos no município de Baixo Guandu, no norte do Espírito Santo. Nossa casa era vizinha de uma delegacia, muito freqüentemente chamada “cadeia”. Alguma lembrança eu ainda tenho da grade da cela, uma pequena grade como janela, que dava para a lateral do terreno em que morávamos. E, por causa dessa lembrança, alguns dias atrás é que me dei conta de quando eu fui apresentado a esse ser tão desrespeitado, tão ultrajado em seus direitos, tão humilhado, que é o preso.
Foi naquela época. Ele, cujo nome até hoje meu pai não esqueceu, chamava-se Adão, apareceu na minha vida para que pudesse, cedo, saber que dentro de uma cela há sempre um ser tentando sobreviver e que é gente! Veio-me ele para afirmar uma convicção que guardo até hoje: ele era igualzinho a mim: nariz, boca, pernas... Tudo tal como um ser qualquer. Melhor: tudo tal como um ser especial, como somos todos nós (todos, todos especiais: de “braços dados ou não”).
Lembro (e o que esqueço meus pais me socorrem) que nós aprendemos a tratar bem àquele presidiário. Ele dialogava conosco através daquela pequena janela gradeada. Há, por admirável que pareça, uma lembrança de termos recebido do Adão, eu e meus irmãos, uma laranja. Que coração! Ele, preso, solitário, com parcos recursos, quase nada, mas com um coração gigante...
Não faz muitos dias eu disse para alguém que se nossos presídios fossem cercados de acrílico, totalmente transparentes, permitindo ver todo o flagelo por que passam aqueles seres lá dentro, talvez a sociedade interviesse em seu favor e exigisse o cumprimento dos seus direitos, o direito dos presos.
Mas, não ver o que acontece lá dentro, ignorar aquela realidade, faz bem a muitos. Isto é muito semelhante ao que Jesus contou através da parábola do bom samaritano: muitos passavam de largo, porque se eles nem sequer tomassem conhecimento da necessidade daquele que pedia socorro, melhor seria para a sua consciência. Sim, acontece muito conosco: ignorar causa uma paz. Pra que visitar um hospital público? Pra que ouvir o lamento do menor na rua? Pra que saber como estão as unidades de internação de menores? Pra quê?
Todavia, como diz um grande escritor, homem da Sociologia, do Direito e da Teologia, Robinson Cavalcanti, essa ignorância não traz mais do que uma falsa paz, uma falsa paz produzida pela alienação!