domingo, 21 de agosto de 2011

Embora não saia na foto, o coração sente

                          Gilvan Vitorino C. S.
O ambiente de uma Delegacia de Polícia é sempre tenso. Confesso que meus batimentos cardíacos me incomodam quando entro numa delas. Trata-se de um ambiente nada amigável, frequentemente hostil.
De quinta a sexta feira, passadas, estivemos em Cachoeiro de Itapemirim. Foi mais uma das tantas idas às Comarcas que possuem ou estão instalando  Conselhos da Comunidade (o que pode ser chamado – conselho da comunidade-, para evitar muitos termos na definição, de “meio de controle social da execução penal).
Na quinta, depois de uma boa reunião com os companheiros daquele município, fomos à Delegacia de Polícia. Subíamos para a carceragem quando ouvi gritos vindos lá de baixo. Logo na entrada, há uma ante sala que fica entre duas celas. Ali se fazia a revista de um preso, não sei por qual motivo, negro.
Eram gritos violentos, com xingamentos...
Desci.
Fiquei ao lado da porta.
Lá dentro, dois policiais civis terminavam o procedimento (o legal e o ilegal).
Fora, já aguardando há não sei quanto tempo, havia duas jovens: rosto de frente para a parede, em pé.  Logo vi um cabo da Polícia Militar dizer que elas haviam sido presas porque uma delas estava com 02 pedras de crack e 60 Reais, enquanto a outra cometera o “crime” de estar com a colega de programa (pois foi isso que elas disseram que faziam: além de viciadas em crack, faziam “programas”).
02 pedras e 60 Reais.
Como é que aqueles policiais presumiram que aquelas jovens eram traficantes? Trata-se de uma incriminação comum por aí... Até mesmo a Lei 11.343/2006 – Lei anti drogas – em seu art. 28, §2°, lamentavelmente, dá azo para que seleção discriminatória como esta aconteça. Diz o texto legal:
Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
Ora, então, o problema não é o que se faz com a droga (se é usada ou traficada), mas quem e onde faz!
02 pedras!
Quanto ao negro que era humilhado, xingado - violentado, portanto -, já nos acostumamos com isto. É como se já tivéssemos criado outra regra: a esculhambação com a pessoa humana (sempre algumas, preferencialmente) é tanta que algumas práticas permitimos, já não nos causam a insatisfação que um dia causaram.
Ora, quanto a isso, digo que devemos resistir a qualquer renúncia. Nada pode ser renunciado, pois não é renunciável.
No sistema prisional, por exemplo: já vimos tanta coisa horrenda que hoje erramos ao aceitar que um preso fique em pé por horas, ou agachado por muito tempo, ou andando como mulas, ou permaneça por muito tempo apoiado somente na ponta dos pés... Segundo o Protocolo de Istambul, tudo isso são “formas de tortura posicional”. Eis o que diz este Protocolo:
Todas as formas de tortura de posição visam directamente os tendões, articulações ou músculos. Existem vários métodos: “suspensão de papagaio”, “posição de banana” ou o clássico “laço banana” sobre uma cadeira ou simplesmente no chão, posição de bicicleta, manutenção da pessoa de pé durante longo tempo, apoiada num ou nos dois pés ou com os braços e mãos esticados para cima contra uma parede, manutenção da pessoa de cócoras durante longo tempo e imobilização forçada numa pequena jaula. (p. 61)

No dia seguinte, sexta feira pela manhã, fomos ao CDP cachoeirense. Nos CDP’s estão (ou deveriam estar) os presos que aguardam julgamento. Reunimo-nos com vários deles para colher relatos das condições em que estão encarcerados. Há naquela unidade prisional presos com até 01 ano e 11 meses de “tranca”. Sabia que são 23 meses sem acesso à atividade sexual, pois nas unidades prisionais desse modelo não se permite a visita íntima?
Um dos presos - que já estava no regime aberto de uma pena em cumprimento, mas que foi novamente preso por uma alegada agressão à esposa – segundo contou, relatou que certo dia chegaram ao presídio 02 policiais civis. Puseram-no numa viatura policial, foram para um local ermo, e foram logo falando com a típica conduta ameaçadora: “e aí, você vai confessar logo ou vai querer se ver com a gente?” Queriam que ele confessasse vários homicídios investigados.
São esses homicídios que precisam ser investigados e precisam que alguém os tenha cometido... Trata-se de prática muito comum por aí. Ninguém melhor para ser criminalizado do que aquele já transformado em pária da sociedade. Ah, já ia me esquecendo de relatar: este preso é negro como a maioria no sistema prisional!
Logo após seu relato, orientei todos eles sobre tal ato ilegal realizado pelos policiais, pois ninguém pode retirar um preso de uma unidade prisonal senão por meio de uma ordem judicial. Depois, ao fim da reunião, fui ao diretor para questionar o ocorrido e orientá-lo para que jamais permita que algo semelhante ocorra, mesmo que seja uma ação perpetrada por policiais.
Mais uma vez ficou demonstrado que, embora o sistema prisional do Espírito Santo possua unidades prisionais que ficam bem na foto, há muita coisa lamentável ocorrendo que, todavia, não pode ser fotografada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente criticando, concordando, discordando e complementando.
Espero, ainda, sua colaboração, enviando textos diversos, segundo os temas de cada área.
Envie seu texto para gilvanvitorino@ig.com.br