José Roberto de Andrade
Os negros alcançaram a
liberdade no Brasil em 1888, porém o simples fato de ser livre não significava
possuir dignidade e poder usufruir os mesmos direitos que os brancos.
A Lei Áurea que pôs fim a
escravidão no Brasil, não garantiu qualquer possibilidade participativa e de
respeito aos recém-libertos. O antropólogo Darcy Ribeiro relata em uma de suas
obras que “não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam os
fazendeiros vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para
expulsá-los, uma vez que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda,
se caía fatalmente em outra.”[1]
O mito da democracia racial
ainda é responsável por ocultar as desigualdades no país, impedindo o
reconhecimento do racismo e de uma leitura democrática do princípio da
igualdade com a criação de políticas públicas e privadas específicas para essa
questão, tal como as ações afirmativas, sob o argumento de que o problema do
Brasil é econômico, logo, de classe e nunca de raça.
Não se pode negar a
presença do racismo na sociedade brasileira como instrumento causador das
enormes desigualdades raciais existentes. No Estado Democrático de Direito a
igualdade adquire uma nova concepção, uma igualdade que busca promover a participação
legítima de todos nos processos democráticos.
A igualdade procedimental
do período contemporâneo deve ser entendida como uma igualdade aritmeticamente
inclusiva para viabilizar que um número crescente de cidadãos possa
simetricamente participar da produção de políticas públicas do Estado e da
sociedade.
O Estado Democrático de
Direito possibilita uma nova forma de se compreender a igualdade, esta não mais
como uma igualdade formal ou material, mas sim como uma igualdade que
proporcione inclusão nos procedimentos democráticos de criação legítima do
Direito, pretendendo criar condições de participação autônoma de todos, pois
cada cidadão deve ser visto como intérprete da Constituição e coautor nos
processos legislativo e hermenêutico.
Neste contexto surgiu o
Estatuto da Igualdade Racial, contexto marcado por enormes desigualdades e
injustiças para com os negros, tendo o Estatuto como objetivo incluir minorias
que sempre sofreram com as desigualdades e com a discriminação na sociedade
brasileira. É um importante instrumento para se vencer as desigualdades, o
racismo e o falso mito da democracia racial que tem sido utilizado para impedir
o exercício de direitos, uma vez que a execução de políticas públicas
universalistas é incapaz de promover a real inclusão que leve ao exercício da
autonomia e da emancipação dos cidadãos.
Douglas Martins de Souza
tem um exemplo instigante[2]. Imaginemos determinada
política estatal dedicada a combater o desemprego, criando novos postos a
partir da informação de que 16 em cada grupo de 100 pessoas economicamente
ativas encontram-se desempregadas numa determinada região.
Os formuladores da política
estabelecem como meta a criação de 6 postos de trabalho por 100 pessoas por
ano, na expectativa de reduzir a taxa de desemprego de 16% para 10% em um ano.
Ao final de um ano verifica-se o sucesso da política, com redução de 6% na taxa
de desemprego regional.
Um sucesso? Depende.
Suponhamos que,
escrutinando os aspectos sociológicos, os técnicos constatem tratar-se de
região caracterizada pela discriminação de gênero no mercado de trabalho.
Reexaminados os números, considerada a composição de gênero percebe-se que para
cada um daqueles 16 desempregados em 100, 10 eram mulheres e que os 6 postos de
trabalho criados com a política de combate ao desemprego foram ocupados apenas
pelos homens.
O parâmetro universalista,
contrariamente à pretensa “neutralidade”, eliminou o desemprego entre os homens
ao mesmo tempo em que manteve inalterado o desemprego entre as mulheres. A taxa
de desemprego geral caiu de 16% para 10%. A composição de gênero da taxa de
desemprego caiu de 6% para 0% em relação aos homens e manteve-se em 10% em
relação às mulheres.
Em termos relativos,
entretanto, a situação das mulheres piorou. Antes elas significavam 66,66% do
total de desempregados. Agora elas são 100%. A política universalista atingiu
diferentemente a sociedade, considerada sua composição de gênero. Homens podem
comemorar. Mulheres não.
Idêntico raciocínio pode
ser estendido a qualquer contexto de discriminação ou xenofobia. Substitua-se a
categoria “mulher” por “negro”, “índio”, “homossexual”, “deficiente”, “idoso”,
etc., e o resultado será o mesmo.
Os parâmetros
universalistas desfrutam de aparente objetividade que sugere atender o
princípio republicano da igualdade. Gozam de prestígio porque se apresentam
como neutros ao senso comum. Essa aparente neutralidade é manuseada como
principal tese de defesa das chamadas “cotas sociais” contra as “cotas
raciais”.
Porém quando examinamos sua
dinâmica no contexto de sociedades historicamente formadas na desigualdade a
partir de estruturas de segregação e preconceito, o que se verifica é que esses
parâmetros impactam diferentemente, preservando, quando não agravando, a
condição de segmentos tradicionalmente discriminados.
É por isso, conclui Douglas
Souza, que ao desprezar a função estruturante dos aspectos socioculturais da
pobreza (entre eles o racismo), a retórica da objetividade das políticas
universalistas contribui decisivamente para turvar a percepção dos obstáculos
erguidos em face da inclusão, mantendo-os na invisibilidade.
Embora suscite hoje tanta
polêmica, este tema esteve sob o tapete por muito tempo e como dizia o senador
Abdias do Nascimento: “o debate já é uma vitória!”.
José Roberto de Andrade é advogado,
Presidente da Comissão de
Igualdade Racial da OAB/ES e
membro da Coordenação do Coletivo Fazendo Direito