sábado, 17 de novembro de 2012

DEMOCRACIA, DIVERSIDADE E INCLUSÃO


                     José Roberto de Andrade
Os negros alcançaram a liberdade no Brasil em 1888, porém o simples fato de ser livre não significava possuir dignidade e poder usufruir os mesmos direitos que os brancos.

A Lei Áurea que pôs fim a escravidão no Brasil, não garantiu qualquer possibilidade participativa e de respeito aos recém-libertos. O antropólogo Darcy Ribeiro relata em uma de suas obras que “não podiam estar em lugar algum, porque cada vez que acampavam os fazendeiros vizinhos se organizavam e convocavam forças policiais para expulsá-los, uma vez que toda a terra estava possuída e, saindo de uma fazenda, se caía fatalmente em outra.”[1]

O mito da democracia racial ainda é responsável por ocultar as desigualdades no país, impedindo o reconhecimento do racismo e de uma leitura democrática do princípio da igualdade com a criação de políticas públicas e privadas específicas para essa questão, tal como as ações afirmativas, sob o argumento de que o problema do Brasil é econômico, logo, de classe e nunca de raça.

Não se pode negar a presença do racismo na sociedade brasileira como instrumento causador das enormes desigualdades raciais existentes. No Estado Democrático de Direito a igualdade adquire uma nova concepção, uma igualdade que busca promover a participação legítima de todos nos processos democráticos.

A igualdade procedimental do período contemporâneo deve ser entendida como uma igualdade aritmeticamente inclusiva para viabilizar que um número crescente de cidadãos possa simetricamente participar da produção de políticas públicas do Estado e da sociedade.
O Estado Democrático de Direito possibilita uma nova forma de se compreender a igualdade, esta não mais como uma igualdade formal ou material, mas sim como uma igualdade que proporcione inclusão nos procedimentos democráticos de criação legítima do Direito, pretendendo criar condições de participação autônoma de todos, pois cada cidadão deve ser visto como intérprete da Constituição e coautor nos processos legislativo e hermenêutico.

Neste contexto surgiu o Estatuto da Igualdade Racial, contexto marcado por enormes desigualdades e injustiças para com os negros, tendo o Estatuto como objetivo incluir minorias que sempre sofreram com as desigualdades e com a discriminação na sociedade brasileira. É um importante instrumento para se vencer as desigualdades, o racismo e o falso mito da democracia racial que tem sido utilizado para impedir o exercício de direitos, uma vez que a execução de políticas públicas universalistas é incapaz de promover a real inclusão que leve ao exercício da autonomia e da emancipação dos cidadãos.

Douglas Martins de Souza tem um exemplo instigante[2]. Imaginemos determinada política estatal dedicada a combater o desemprego, criando novos postos a partir da informação de que 16 em cada grupo de 100 pessoas economicamente ativas encontram-se desempregadas numa determinada região.

Os formuladores da política estabelecem como meta a criação de 6 postos de trabalho por 100 pessoas por ano, na expectativa de reduzir a taxa de desemprego de 16% para 10% em um ano. Ao final de um ano verifica-se o sucesso da política, com redução de 6% na taxa de desemprego regional.

Um sucesso? Depende.

Suponhamos que, escrutinando os aspectos sociológicos, os técnicos constatem tratar-se de região caracterizada pela discriminação de gênero no mercado de trabalho. Reexaminados os números, considerada a composição de gênero percebe-se que para cada um daqueles 16 desempregados em 100, 10 eram mulheres e que os 6 postos de trabalho criados com a política de combate ao desemprego foram ocupados apenas pelos homens.

O parâmetro universalista, contrariamente à pretensa “neutralidade”, eliminou o desemprego entre os homens ao mesmo tempo em que manteve inalterado o desemprego entre as mulheres. A taxa de desemprego geral caiu de 16% para 10%. A composição de gênero da taxa de desemprego caiu de 6% para 0% em relação aos homens e manteve-se em 10% em relação às mulheres.

Em termos relativos, entretanto, a situação das mulheres piorou. Antes elas significavam 66,66% do total de desempregados. Agora elas são 100%. A política universalista atingiu diferentemente a sociedade, considerada sua composição de gênero. Homens podem comemorar. Mulheres não.

Idêntico raciocínio pode ser estendido a qualquer contexto de discriminação ou xenofobia. Substitua-se a categoria “mulher” por “negro”, “índio”, “homossexual”, “deficiente”, “idoso”, etc., e o resultado será o mesmo.

Os parâmetros universalistas desfrutam de aparente objetividade que sugere atender o princípio republicano da igualdade. Gozam de prestígio porque se apresentam como neutros ao senso comum. Essa aparente neutralidade é manuseada como principal tese de defesa das chamadas “cotas sociais” contra as “cotas raciais”.

Porém quando examinamos sua dinâmica no contexto de sociedades historicamente formadas na desigualdade a partir de estruturas de segregação e preconceito, o que se verifica é que esses parâmetros impactam diferentemente, preservando, quando não agravando, a condição de segmentos tradicionalmente discriminados.

É por isso, conclui Douglas Souza, que ao desprezar a função estruturante dos aspectos socioculturais da pobreza (entre eles o racismo), a retórica da objetividade das políticas universalistas contribui decisivamente para turvar a percepção dos obstáculos erguidos em face da inclusão, mantendo-os na invisibilidade.

Embora suscite hoje tanta polêmica, este tema esteve sob o tapete por muito tempo e como dizia o senador Abdias do Nascimento: “o debate já é uma vitória!”.

                                      José Roberto de Andrade é advogado, 
 Presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/ES e 
membro da Coordenação do Coletivo Fazendo Direito


[1] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2 ed. São Paulo:Companhia das Letras, 1995, p.221.
[2] PIOVESAN, Flávia; SOUZA, Douglas Martins de (Coord.) Ordem Jurídica e igualdade étnico-racial. Lumen Juris, 2008, p.11/12.

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