sábado, 21 de janeiro de 2012

Fugir para contar

                 Gilvan Vitorino C. S.
Gabriel García Márquez (em Viver para contar) afirma que não é possível construir um personagem (que tem máscara de humano, digo eu) apartado da personalidade dos indivíduos reais.

Ora, assim, a arte imita a vida...

Mas, sei que a vida também imita a arte.
Quando assistimos a um filme em que há um prisioneiro numa prisão infernal, saudamos sua atitude quando ele consegue fugir daquele inferno.  Quem não se emocionou com a fuga do protagonista do filme “O expresso da meia noite”?

Há muitas versões de prisões: todas elas, de uma forma ou de outra - porque aprisionam (!) - são infernais, produtoras de morte (mesmo que seja uma morte sem sangue...). Dentro das prisões, mesmo quando o presídio sai bem na foto, não há e não pode haver vida, uma mínima vida com dignidade. Seja qual for a cela, ela alberga o choro, a tristeza, a dor, a desesperança, a saudade em demasia (e saudade em demasia fere), a abstinência sexual involuntária (que pode enlouquecer), a separação de famílias, a sujeição de um indivíduo a outro (maior sujeição do que a comum, encontrada em outros espaços). Uma cela alberga o ódio, a tortura, a doença... E, frequentemente, alberga a ociosidade, fazendo do “tempo que não anda” uma permanente dor.
Dentro de uma cela, mesmo aquelas celas de algumas prisões da Europa (divulgadas pela rede como se fossem quartos de hotéis), tempo e espaço são os maiores inimigos do homem encarcerado – pois sobra tempo e falta espaço.

Ora, então, confesso: não lamento quando alguém escapa dos espaços infernais contidos nas instituições prisionais. Pois cada fuga, de alguma forma, abole a prisão, ainda que somente a prisão do indivíduo que vai.
Segundo o que tenho lido e verificado nas unidades prisionais, atento às várias formas de tortura e maus tratos, digo, com muita convicção, que não há encarceramento que não seja violento, com tortura e maus tratos... Mas, para concordar comigo, é preciso ver além do que mostram as sombras (e bem mais além do que uma fotografia pode expor).

Há muita ilegalidade produzida pela SEJUS-ES na execução das penas privativas de liberdade. Algumas delas afrontam e muito a dignidade humana.
A tortura é mais comum dentro das unidades prisionais do que comumente se imagina.

Em A Tribuna do dia 18 de janeiro deste ano, na página 36, que deu ampla repercussão à iniciativa do Desembargador Presidente do TJ-ES de não dar trégua aos torturadores, assim se pronunciou o Secretário de Justiça: “Não podemos aceitar a tortura. É um ato de covardia. Tal prática não pode ser aceita”.

Ora, então o secretário Ângelo Roncalli é contra a prática da tortura?

E o que é tortura?
De acordo com a lei 9455, de 7 de abril de 1997:
                      
                        Art. 1º Constitui crime de tortura:

I - constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.


É preciso dar a devida importância àquilo que tem sido posto de lado quando se discute acerca da tortura. A lei fala de intenso sofrimento físico e mental.

Quando se fala em tortura, o que de pronto se concebe, revelando um grave erro, são atos como os relatados a seguir:
No decorrer de nossa pesquisa, a Human Rights Watch entrevistou dezenas de presos que descreveram, com credibilidade, terem sido torturados em delegacias de polícia. Normalmente, os presos eram despidos, pendurados em um “pau-de-arara” e submetidos a espancamentos, choques elétricos e quase-afogamentos. (Protegendo os brasileiros contra a tortura: Um Manual para Juízes, Promotores, Defensores Públicos e Advogados, p. 55)

 O erro está em não considerar as outras formas de tortura. Trata-se de atos tão banais, que parece exagero citá-los. Mas, a obra Monitoramento de locais de detenção: um guia prático, não os despreza.

As equipes de visita [que monitoram os locais de detenção] devem saber que há práticas, que podem não cair na definição clássica de tortura, as quais são mais difíceis de detectar, e que podem, em longo prazo, destruir o equilíbrio psicológico de quem está privado de liberdade. Estas são muito perigosas, já que com frequência os detentos vítimas dessas práticas estão tão acostumados a esse tratamento que nem sempre estão em posição de identificar e informar sobre as mesmas de forma explícita. (p. 13 a 104)

Ora, se até na Academia e nos movimentos sociais tais formas de tortura são desconsideradas, mais ainda o são no meio dos presos.

Segundo o guia, são exemplos destas práticas:

·         ignorar sistematicamente uma solicitação até que ela se repita várias vezes;
·         dirigir-se às pessoas privadas de liberdade como se fossem crianças pequenas;
·         nunca olhar os detentos nos olhos;
·         trancar os detentos em suas celas repentinamente, sem razão alguma;
·         criar um clima de desconfiança entre os detentos;
·         permitir o descumprimento do regimento uma vez e castigar caso não se cumpra em outra oportunidade, etc. (p. 104).

Creio não ser por acaso que a LEP – lei 7210/84 – prescreve como direito do preso ser chamado pelo nome, repelindo os tratamentos pelos apelidos que, em geral, são tão jocosos, humilhantes...

Ainda, talvez uma das formas de tortura mais comum no interior das unidades prisionais, chamada pelo Protocolo de Istambul de tortura posicional:

Todas as formas de tortura de posição visam directamente os tendões, articulações ou músculos. Existem vários métodos: “suspensão de papagaio”, “posição de banana” ou o clássico “laço banana” sobre uma cadeira ou simplesmente no chão, posição de bicicleta, manutenção da pessoa de pé durante longo tempo, apoiada num ou nos dois pés ou com os braços e mãos esticados para cima contra uma parede, manutenção da pessoa de cócoras durante longo tempo e imobilização forçada numa pequena jaula. (p. 61)

Ora, mas alguém poderá dizer: mas, diante de tudo o que acontece nas prisões,não será exagero pleitear um tratamento desse nível?

Ao que respondo: a ninguém cabe selecionar direitos para o preso. A ele, tudo o que a sentença condenatória não retirou e não poderia retirar. Ele, que está e sempre deverá estar albergado pela Constituição Federal  (Art. 5° XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral), permanece com todos os direitos, na medida do que prescreve a LEP: Art. 3º Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.

Portanto, posto que tortura é mais do que aquilo que mostram os filmes hollywoodianos (pau de arara, espancamentos, choques elétricos, etc), voltemos à declaração do secretário de Justiça: “Não podemos aceitar a tortura. É um ato de covardia. Tal prática não pode ser aceita”.

Será?

Ou alguma tortura faz parte do disciplinamento nas unidades prisionais, portanto, seria uma tortura aceitável pelo Estado?

Ora, a rebelião que as presas provocaram em Tucum, em 2011, embora estivessem numa unidade prisional pavorosa, dentre outros motivos, foi porque temiam ir para o complexo de Xuri.

Mas, as unidades de Xuri não eram exemplares?

É que lá elas temiam enlouquecer... com o disciplinamento, mais conhecido como tortura psicológica.












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