VITORINO C.S., Gilvan. "A estética da criminalização".
Disponivel em: (http://www.ibccrim.org.br)
|
Gilvan
Vitorino C. S.*
A
criminalização de condutas é uma prática corriqueira. Trata-se de atribuir
caráter de ilicitude penal a um ato...
Muitas
vezes ao nos depararmos com o termo criminalidade temos dificuldade de saber do
que se trata. Ora se refere ao cometimento de algum fato descrito nas normas jurídicas penais, ora a
um comportamento que se pretende reprovar, até mesmo algum incidente de
indisciplina na escola, como adverte Wacquant.[1] E,
ainda, não é incomum que alguma atividade seja nomeada de criminosa dependendo
do indivíduo que lhe deu causa ou, o que é mais frequente, da classe social a
que pertence tal indivíduo. Por exemplo: uma conduta de adolescentes no
interior de um shopping center poderá ser uma baderna ou uma tentativa de
“arrastão”[2]. A
subtração de um objeto de pequeno valor poderá ser um “transtorno”[3] ou
um furto. Uma briga no interior de um baile funk seria o quê? E numa boate
freqüentada pela classe média ou alta?
Michel
Misse chama de criminação a qualificação da conduta feita segundo a
representação social acerca dela, e de incriminação a atribuição desta conduta
a certo indivíduo.
Criminalizar
é um ato de vontade, ou seja, exige que alguém decida que conduta pode ser
considerada crime e quem será apontado como seu autor.
Isso
tem grande importância jurídica e política pois, mais que o objeto (o indivíduo
cuja ação é posta sob juízo), aquele que efetua o juízo de valor acerca da
conduta é que fará sua prescrição ou proscrição.
Também
é importante lembrar o que Misse bem verificou: uma conduta é criminada e, em
seguida, incrimina-se um indivíduo. Todavia, quando se inverte esta ordem, ou
seja, quando alguém é incriminado antes que qualquer conduta aconteça, trata-se
do que Misse chamou de “sujeição criminal”.
Exemplo
de sujeição criminal pode ser encontrado facilmente: as abordagens policiais em
geral se valem disso, pois presumem que determinados indivíduos, por motivo de
cor, vestimenta (lembra do frequentemente dito: “ele não parecia bandido pois
estava tão bem vestido!”), bairro onde residem, etc, tenham cometido crimes...
O
fenômeno da sujeição criminal constitui um paralelo com a invisibilidade,
identificada na obra “Cabeça de porco”. Esta invisibilidade é causada por
preconceito ou indiferença, que leva a estigmatização de indivíduos, ou seja,
“tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é
singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do outro e a substitui
pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos”[4].
O
cinema frequentemente é meio de criminalização. Povos inteiros são incriminados
previamente, levando ao estigma de traficantes (já foi o boliviano, tempos
atrás, hoje, o traficante tem sido o colombiano), de terroristas (Oriente
Médio), de contrabandistas (chineses, por aqui, embora se confunda contrabando
com descaminho. Mas, nossa criminalização – criminação, na perspectiva de Misse
- nem sempre faz remissão a tipo
penal...) etc.
Tanto
os órgãos administradores do sistema penal como a sociedade em geral são
pródigos em criminalização. Até os nossos doutos dos programas de rádio
criminalizam...
Alguns
destes o fazem sorrindo, falando bonito, com voz mansa... São autoridades em
qualquer assunto, sabem de tudo, enciclopédicos, estão acima de qualquer
suspeita, polidos, bebem do bom vinho.
No
dia 04 de junho, o programa “Liberdade de expressão”, da CBN, tratou de um tema
próprio deste mês, mês de festas de São João: a tradição de soltar balões.
Três
autoridades no assunto expuseram suas opiniões (os três de sempre do programa:
Artur Xexéo, Carlos Heitor Cony e Viviane Mosé).
Tentarei
reproduzir o ocorrido, socorrido pela memória:
Começa
o Xexéo: para ele, esta prática de soltar balões é absurda, uma atividade de
gangues, um crime. Eles invadem propriedades privadas, destroem florestas,
violam a vida...
E
mais ele falou, sempre negativamente.
Em
seguida, entra o Cony: “Eu já fui baloeiro”.
Rapidamente,
evitando interromper, exclama a Vivi (como é chamada a Viviane Mosé): “Que
lindo, Cony!”
Segundo
o Cony, seu avô e seu pai foram baloeiros. Para ele, soltar balões é uma
tradição poética. Até um livro (traduzido para o francês) sobre balão ele
escrevera. Não é coisa de gangues, faz questão de destacar. Foi baloeiro até os
30 anos...
Mas
Cony era diferente: seu pai, segundo ele, o ensinou a soltar balões de acordo
com as correntes de ar, para que caíssem no mar. Até se lembrou de um que
soltara e caíra no mar...
Por
derradeiro, entra a Vivi: “Também fui baloeira...” (que lindo, Vivi! - poderia
ter expressado o Cony, mas ficou calado).
Mas
Vivi, que estava encurralada (entre a criminologia de Xexéo e a licenciosidade
de Cony), sobe no palanque bradando: tudo bem, mas essa prática de soltar
balões já não pode ser aceita nos nossos dias. Segundo ela, atendendo à fúria
do Xexéu e ao saudosismo autoindulgente do Cony, é preciso pensar em novos
modelos de jogos e brincadeiras como alternativa...
Só
não captei bem a ideia da Vivi de política pública: alternativa para o Xexéo ou
para ela e o Cony?
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
SOARES,
Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE Celso. Cabeça de porco. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=HVJaJCzRfCYC&printsec=frontcover&dq=cabe%C3%A7a+de+porco&source=bl&ots=d9SYzFqlh2&sig=jABf7RllGGFxC3h4s8Jzj3dE4Yo&hl=pt-BR&ei=876fTOfuOMK78gajrqW2Dg&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved=0CBkQ6AEwAA#v=onepage&q&f=false>.
Acesso em: 14 jun 2012.
MISSE,
Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do
crime e da violência urbana. (Coleção conflitos direitos e culturas). Rio de
Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
WACQUANT,
Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. 2. ed. Rio
de Janeiro: Revan, 2003.
[1] WACQUANT, 2003, p. 153.
[2] Essa conduta ficou conhecida a partir das praias do Rio de
Janeiro. Segundo relatos da imprensa, um grupo de pessoas, geralmente de
indivíduos com menoridade penal (menos
de 18 anos), saiam em disparada pelas areias das praias, causando algum
rebuliço e subtraindo objetos dos banhistas.
[3] O rabino Henry Sobel, que foi detido
em março de 2007, sob acusação de ter furtado quatro gravatas de lojas de
grifes luxuosas em Palm
Beach , na Flórida (Estados Unidos). "É muito difícil
para mim explicar o inexplicável", afirmou em entrevista neste sábado. Ele
pediu desculpas pelos "transtornos" e afirmou que quem cometeu o ato
"não é o Henry Sobel que vocês conhecem". Disponível em:
www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano, acesso em 21 ago 2009.
[4] SOARES; BILL; ATHAYDE,
p. 175.