sábado, 6 de abril de 2013

Memória e Verdade


                   João Baptista Herkenhoff

Se o Supremo Tribunal já jogou uma pá de cal para cobrir os ignóbeis atos de tortura, para que serve a Comissão da Verdade?

O Supremo Tribunal Federal entendeu que os torturadores do regime ditatorial, instaurado no Brasil em primeiro de abril de 1964, foram amparados pela Lei da Anistia, conquistada por pressão do povo em 28 de agosto de 1979.

Essa decisão da mais alta corte do país foi lavrada em nove de abril de 2010.

Somente dois ministros divergiram da maioria: Ayres Britto e Ricardo Lewandovski.

Ayres Britto foi incisivo: “O torturador não é um ideólogo, não comete crime de opinião, não comete crime político. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado”.

O Supremo errou, mas é o mais alto tribunal do país. Na forma da Constituição, diz a palavra final.

Assim sendo, mesmo discordando, temos de aceitar o supremo erro da suprema corte.

Juridicamente, não podemos impugnar a decisão. Só a História poderá fazê-lo. A História é implacável, motivo pelo qual até hoje Piltatos é símbolo do juiz covarde.

Vamos tentar esclarecer as razões que nos autorizam rechaçar a esdrúxula interpretação dada pelo STF à Lei da Anistia.

O Supremo fundamentou seu entendimento no princípio da segurança jurídica que estaria abandonado se deixasse ao desamparo da anistia os torturadores.

Segurança jurídica a proteger a tortura, que absurdo! O que a consciência nacional reclamava é que o Supremo tivesse a coragem de decidir: “Tortura não é crime politico, os torturadores não foram anistiados. Nenhuma situação política justifica ou autoriza torturar um ser humano.”

Mas voltando ao início do artigo: à face da soberana decisão do Supremo, que papel pode ser desempenhado pela Comissão da Verdade?

Vejo dois objetivos que devem ser perseguidos pelas Comissões Estaduais da Verdade e pela Comissão Nacional da Verdade:

  • primeiro objetivo – descobrir a verdade, revelar a verdade principalmente para os jovens porque a História não se pode perder e mesmo os erros devem ser conhecidos para que não sejam repetidos; um povo que não conhece seu passado, quer o passado de glórias, quer o de ignomínias, não saberá construir o futuro; é preciso descerrar a cortina que encobriu os crimes da ditadura;
  • segundo objetivo – dar a palavra aos torturados, permitir que manifestem a revolta à face do que sofreram, pois um sofrimento suplementar que lhes foi imposto consistiu no silêncio a que foram submetidos. A Bíblia, que é um livro sábio, diz que a palavra liberta (João, 8, 32). O direito de falar, que lhes foi negado, as Comissões da Verdade devem lhes restituir.

 

João Baptista Herkenhoff é Juiz de Direito aposentado e escritor. Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo.



 

É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo, inclusive através da transmissão de pessoa para pessoa.

 

terça-feira, 2 de abril de 2013

Abaixo o “medo da liberdade”

                          Gilvan Vitorino C. S.

O artigo abaixo, “SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!, sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião”, de Paulo Nascimento, enseja uma discussão interessante.

Lembro a reflexão que fez Paulo Freire – sobre o que ele chamou “medo da liberdade” -, quando dizia que muitos (ele refletia no seu "Pedagogia do oprimido") eram contra a educação dos operários, dos pobres, dos despossuídos, porque a sua conscientização e politização – por meio da educação - poderia levar à anarquia:
Não são raras as vezes em que participantes destes cursos [os cursos de capacitação que ministrava Paulo Freire], numa atitude em que manifestam o seu ‘medo da liberdade’, se referem ao que chamam de ‘perigo da conscientização’. ‘A consciência crítica (... dizem...) é anárquica’. (FREIRE, 2009, p. 23)
Quanto aos que estão presos, eu diria que se passa como Freire verificou acima... Não só as autoridades têm medo de que os encarcerados tenham consciência da sua dignidade (mulheres e homens a cujos direitos não renunciaram – nem podem renunciar), mas, também, uma parte expressiva da população teme isto.
O sistema prisional alberga os invisíveis (ver “Cabeça de porco”, de, entre outros, MV Bil) e os que se inserem no que Michel Misse chama de “sujeição criminal”. Esta clientela do sistema prisional não adentra as prisões por necessariamente ter cometido um fato delituoso. As vítimas do sistema prisional são pré selecionadas, podendo ter cometido algum delito ou não: são, quase todas, previamente incriminadas... Por isso, além de terem sido consideradas descartáveis ao serem encarceradas, são mais ainda descartadas ao serem violentamente tratadas pelo sistema prisional. E, também por tudo isso, todos aqueles que têm alguma ligação com estes indivíduos encarcerados são também considerados indivíduos descartáveis, podendo ser tratados como indivíduos de menor dignidade (veja-se como são tratados os familiares que visitam os seus na prisão).
Assim, negar-lhes uma ampla divulgação dos seus direitos, negar-lhes uma ampla assistência jurídica, negar-lhes o contato com os movimento sociais (especialmente aqueles movimentos cuja bandeira é a bandeira dos Direitos Humanos) não é um desvio do sistema. Toda essa negação faz parte da estrutura de domínio; é a regra, não a exceção.
Porque um preso que conheça de forma crítica seus direitos, sua condição de sujeito de direitos, poderá questionar demais. Um preso assim pode por em xeque as decisões de um agente prisional, as decisões de um diretor de presídio, as decisões de um secretário de justiça. Um preso assim pode até por em dúvida as práticas de um juiz ou de um promotor da execução penal (que atua no sistema prisional).
Mas, uma consciência crítica assim (crítica em geral e, especialmente, de espírito arguto em se tratando de direitos do preso) pode, quando se tratar dos parentes e pessoas próximas dos presos, transformar-se em meio de libertação. Não uma libertação das grades (mas também delas), necessariamente, mas uma libertação do jugo de ser considerado e tratado como um indivíduo de menor dignidade.
Uma consciência assim pode levar ao bloqueio de ruas, rodovias... Pode levar a greves de fome, a manifestações em frente das unidades prisionais. Uma consciência de que se é sujeito da história (como apregoou Paulo Freire) e sujeito de uma especial dignidade como é a dignidade de todos os indivíduos pode levar a uma ação como esta, chamada de “movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião”, de Alagoas.

SEXO FRÁGIL COISA NENHUMA!

http://opiocoisanenhuma.blogspot.com/
Por: Paulo Nascimento
Sobre o movimento das mulheres dos presidiários do Cadeião
“Quem vê um pântano à luz da lua pode enganar-se: aquela lhe parecerá uma visão de paz. Mas, por baixo, não passa de podridão e lama em fermentação. Nós não queremos a paz dos pântanos, a paz enganadora que esconde injustiças e podridão”
(Dom Helder Câmara)
Marcos Monteiro havia dito em Um jumentinho na avenida: A missão da igreja e as cidades, que Maceió nos permite visualizar o que está acontecendo em nosso planeta. Nessa cidade – segue Marcos – encontramos todos os problemas do nosso século, da prostituição à ameaça ambiental, da criança de rua à violência institucional. Se não me engano, Marcos Monteiro morou aqui na década de 1990. No entanto, sua intuição segue bastante atual. Maceió continua sendo uma vitrine interessante para se ver o mundo. Mais ainda para se ver o Terceiro Mundo! Ao modo de um ponto do holograma, Maceió hospeda em si toda a complexidade das lutas que se travam em muitas partes do mundo hoje.
Na manhã de hoje (03/11) as mulheres dos presidiários do Baldomero Cavalcante (o “Cadeião”), próximo à UFAL, voltaram a interditar a BR-104, com piquetes de pneus queimados, impedindo o trânsito nos dois sentidos. Eu saía da UFAL para casa. Para não ficar preso no congestionamento, tomei um desses transportes alternativos e perambulei por duas horas pelas ruas e vielas não pavimentadas do bairro Santos Dummont. O motivo da manifestação, segundo o noticiário, havia sido a suspensão da entrada de objetos suspeitos no presídio e a restrição das visitas.
A manifestação das mulheres dos presidiários do Cadeião pode ser vista por muitos ângulos diferentes. Para o cidadão ordinário que já anda meio ressentido com protestos desse tipo, e só deseja voltar para casa depois do trabalho, da escola ou da universidade, a manifestação das mulheres quase sempre é vista como um vandalismo disfarçado de reivindicação, que penaliza quem não nada tem a ver com o problema. Para a polícia (epifania do poder repressor do Estado!), obviamente, ali está uma possibilidade de perigo à ordem pública a ser reprimido até que a ordem se refaça. Para a imprensa, o piquete das mulheres dos presidiários é somente mais um fato corriqueiro a merecer poucas linhas num editorial da seção “cotidiano” e poucos minutos no jornal das seis.
Pois de minha parte penso que a “desordem” dessas mulheres é tão legítima quanto necessária. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que aquilo que chamamos de “ordem” é caos, e aquilo que chamamos de “caos” é útero de uma ordem nova, diferente, justa e mais humana. Com seu piquete, elas vão nos dizendo que nossa paz é uma “paz de pântanos” (Dom Helder), que esconde injustiças e podridão.
Essas mulheres são todas pertencentes às classes mais baixas da sociedade. O encarceramento de seus companheiros agrega a isso um fardo que nenhum “sexo frágil” suportaria carregar. Já pude conversar com algumas delas, e descobri como seu cotidiano é transformado pela prisão de seus companheiros. São elas que se encarregam da administração da casa, duplicando a jornada de trabalho. Sobre elas duplica o cuidado dos filhos, e a elas compete a batalha no campo judicial para fazerem valer os direitos que seus companheiros têm perante a lei. Não podendo pagar os serviços dos melhores advogados, recorrem à Defensoria Pública, que, como todo órgão do Estado, convive com a morosidade e com uma maneira peculiar de tratar as pessoas mais pobres de nossa cidade, marcada sempre por um semi-descaso. Nos dias de visita, dormem nas filas, sempre ao relento. O piquete, portanto, é para elas a única forma de fazerem-se ouvir perante a sociedade. Como mulheres que se sabem sujeitos de certos direitos, não podem fazer como as feministas mais sofisticadas, que atuam no campo da ciência e da ideologia. De que outra forma essas mulheres invisíveis poderiam fazer ouvir a sua voz?
O que é caos? O que é ordem? O que é paz? O que é desordem? São as questões suscitadas pelo piquete de pneus das mulheres dos presidiários do Cadeião. Caos e ordem são apenas uma questão de perspectiva? Se for, assumo a perspectiva dessas mulheres baderneiras, incontidas, desordeiras, rebeldes, quase sempre negras e sempre pobres. Algumas delas foram presas, acusadas de apedrejar os ônibus que tentaram atravessar seu piquete. Duvido que tal atitude da polícia, que mais do que uma ação contra indivíduos é uma tentativa de intimidação do movimento, sirva para anular a força dessas mulheres.
Assim, já sei que destino dar aos pneus velhos no fundo do meu quintal. Vamos impedir a proliferação do mosquito da Dengue!

Jurista marginal

                            João BaptistaHerkenhoff

Quando eu era Juiz de Direito, em atividade, era chamado por algumas pessoas, pejorativamente, com o codinome de jurista marginal. O epíteto não me era atribuído pelos leigos em Direito, o que seria menos doloroso, mas por profissionais que integravam o universo jurídico

 

Isto acontecia porque, seguindo a consciência e por uma questão de foro íntimo, eu dava sentenças que, naquela época, não guardavam sintonia com o pensamento dominante e a jurisprudência dos tribunais superiores.

 

Na década de 1960 –esclareça-se esta data porque é essencial – preferia absolver a condenar. Optava por dar penas leves, quando era obrigado a condenar, do que aplicar pesadas penas. Acreditava na palavra e dialogava com acusados e réus, tratando-os como seres humanos, portadores de dignidade porque tinham na alma, ainda que trangressores da lei, o selo de Deus. Confiava em acusados e réus, firmando com eles pactos de bem viver. Emocionava-me porque nenhuma lei ou código de ética proíbe o juiz de ter emoções. Colocava nos despachos e decisões a Fé que recebi na infância. Assim agia por entender que o Estado é laico mas o magistrado, embora integrando um dos Poderes estatais, pode revelar sua crença, sem ferir a laicidade do Estado. Esforçava-me por obter acordos, no juízo cível, evitando que as partes prolongassem as contendas.

 

Esta visão do Direito não era, de forma alguma, partilhada, naqueles tempos distantes, pelos magistrados do andar de cima. Não fosse o apoio entusiástico e a compreensão integral principalmente de três desembargadores – Carlos Teixeira de Campos, Mário da Silva Nunes e Homero Mafra – teria sido muito difícil resistir às pressões.

 

Porque tudo que eu fazia, era feito com retidão de propósito, o apelido de jurista marginal me magoava muito.

 

Certo dia veio-me a inspiração. Por que eu não transformava a alcunha ofensiva em arma de defesa, de modo a desarmar os opositores?

 

Havia, dentre os que se opunham à conduta judicial adotada, pessoas de espírito nobre, que nada tinham de pessoal contra o juiz marginal, mas apenas discordavam de seus métodos.

 

Em homenagem a estes era preciso dar uma resposta racional e elegante aos questionamentos.

 

Tudo ponderado, como se diz no final das sentenças, escrevi um livro, defendendo a orientação adotada nos decisórios que estavam sendo atacados. Dei ao livro este título: Escritos de um jurista marginal.

 

Atribuindo a mim mesmo o adjetivo nada elogioso, dava nos adversários mentais um dribe decisivo.

A obra foi publicada pela Livraria do Advogado Editora, de Porto Alegre. Procurei, de caso pensado, uma editora localizada bem longe do Espírito Santo. Lá das plagas gaúchas, eu lançaria o livro. Pareceu-me bastante adequado escolher o sul do Brasil para dar início ao périplo pretendido.

 

João BaptistaHerkenhoff é magistrado aposentado, palestrante e escritor. Acaba de publicar Encontro do Direito com a Poesia – crônicas e escritos leves (GEditora, Rio de Janeiro).



 

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