quinta-feira, 31 de maio de 2012

Cristo nos tribunais


    João Baptista Herkenhoff

A Corregedoria de Justiça do Rio Grande do Sul determinou a retirada dos crucifixos, nos fóruns do Estado, sob o argumento de que a presença do Crucificado, num local que é símbolo republicano, agride a separação entre Igreja e Estado.

Vamos refletir sobre o tema.

O Crucifixo nos tribunais relembra o julgamento a que o Cristo foi submetido. Não houve processo, com direito de defesa, mas puro arbítrio. Diante da multidão, Pilatos, num ato de covardia, lavou as mãos.

Se a pregação de Jesus Cristo tivesse apontado para as nuvens, sem atinência com a realidade social, ele não teria sido crucificado: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.”

Ligando o Cristo histórico e eterno aos dias atuais, socorra-nos a reflexão do advogado gaúcho Jacques Távora Alfonsin:

“É isso que acontece quando os preconceitos ideológicos e culturais, que viciam a interpretação das leis contra pobres e marginalizados, ignoram as flagrantes e injustas condutas denunciadas pelas palavras do Condenado Inocente. Esse estabeleceu, como parâmetro do julgamento justo, precisamente o reconhecimento ético-político-jurídico da dignidade humana.”

A questão do Crucifixo nos tribunais ultrapassa os limites de uma discussão meramente acadêmica.

Como Juiz de Direito vivenciei uma situação na qual a imagem do Crucificado, rompendo filigranas jurídicas, foi na verdade indispensável para o proferimento da sentença.

Neuza, uma empregada doméstica, estava presa em Vila Velha, sob a acusação de que cometera crime de furto na casa onde trabalhava. Tinha tirado de uma caixa, onde havia mais dinheiro, o valor de uma passagem de trem para regressar à casa da mãe em Governador Valadares. Agiu assim depois que os patrões se recusaram a lhe pagar pelo menos os dias trabalhados, alegando que ela só teria direito de receber salário ao completar um mês de serviço.

Humilhada, Neuza chorou durante a audiência.

Eu a pus em liberdade. Mas não é pelo fato de ter libertado a acusada que a decisão tem atinência com o tema deste artigo.

O que estabelece o liame entre a libertação da acusada e o Crucifixo foi o fundamento que justificou a decisão:

“Lamento que a Justiça nãoesteja equipada para que o caso fosse entregue a uma assistente social que acompanhasse esta moça e a ajudasse a retomar o curso de sua jovem vida. Se assistente social não tenho, tenho o verbo e acredito no poder do Verbo porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós. Invoco o poder deste Verbo, dirijo a Deus este verbo e peço ao Cristo, que está presente nesta sala, por Neuza. Que sua lágrima, derramada nesta audiência, como a lágrima de Madalena, seja recolhida pelo Nazareno.”

Não teria sido possível proferir esta sentença se não estivesse ali o Cristo Crucificado.

A sala de audiências estava cheia nesse dia. Alguém recolheu o dinheiro para a moça comprar a passagem. Esse gesto espontâneo teve a força de um referendo popular ao julgamento proferido.

Cristo nos tribunais é também uma advertência. Os agentes da Justiça devem manter uma conduta ilibada para não profanar a efígie do Crucificado.


João Baptista Herkenhoff é professor da Faculdade Estácio de Sá do Espírito Santo e escritor.


É livre a republicação deste artigo, por qualquer meio ou veículo.




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