Gilvan Vitorino C. S.
Hoje, saindo de Viana, vi o Bino no ponto de ônibus e, então, parei. Ofereci-lhe carona. Deu sorte, pois disse que iria pelo mesmo caminho que eu. Assim, abri-lhe a porta e ele subiu, não sem antes pedir licença. Tão logo partimos, percebi que na verdade mesmo que o Bino precisasse que eu me desviasse do meu caminho eu o levaria... É que eu, no fundo, queria muito dar carona a alguém. Então, ao vê-lo, percebi logo que ele poderia ser mais do que companheiro de mera viagem.
Eu o conhecera no Fórum. Pedira-me ajuda. Ajudara-o.
Um velho negro com cara de quem já viveu um bocado. E vida dura.
Lá no Fórum, o Bino era só o Bino. Quando entrou no meu carro, contudo, fez o que era passado - e passado dos bons... – presente. Aquele velho senhor enviou-me o meu avô. Assim, ao dar-lhe carona, ressuscitei o meu velho. E não foi um gesto dele que trouxe meu avô de volta; não foi sequer sua modesta vestimenta; também não foi sua aparência. Não, nada que os olhos pudessem perceber lembrava meu avô. Nem os ouvidos meus tiveram qualquer participação na ressurreição do meu velho, embora o Bino falasse com uma voz amigável, mansa, clara. Com uma daquelas vozes dos que viveram, viram, refletiram e aprenderam, mas ainda não sabem de tudo. (E talvez poucas coisas sejam tão grande sinal de vida como a consciência de não saber tudo!).
Assim, ao entrar no meu carro, aquele velho senhor, cansado, pois viera de longe, trouxe meu avô através do gostoso cheiro que exalava. Foi o seu cheiro que trouxe de volta a... vida. Era um cheiro de quem se perfuma somente com a inodora água do banho; um cheiro de mato em dia de chuva fina, temperado com o cheiro da terra e, predominantemente, um cheiro suave dos que pitam aqueles cigarros de palha. Sei lá, eu estou tentando dizer que era um cheiro complexo, mas, confesso, não sou muito bom em descrever aromas. Tinha mais ingredientes ali naquele ambiente fechado do carro, sei que tinha, mas o que me causou impacto foi aquele aroma de quem fuma cigarros de palha, e daqueles feitos de fumo de rolo, aquele fumo que se corta habilmente com um bom canivete. Ah, o Bino ressuscitou o meu avô através do seu cheiro...
Fizemos um longo percurso, dialogando... Eu falava pouco, percebendo que era momento de calar-me. Era quase um monólogo, na verdade. Eu via que ali estavam quase setenta anos de vida. Falou-me de dor e de alegria. Contou-me das estradas em que trabalhara: “era tudo de terra, Bino?” - admirava-me. Lembrou-se das tantas horas que gastava para sair da sua terra – Muniz Freire – para chegar a Vitória: dois dias de viagem. “Primeiro, nóis ía até Castelo, em velho ônibus, depois, de ‘Maria Fumaça’, até Cachoeiro. Ali, nóis pernoitava. No dia seguinte, novamente de ‘Maria Fumaça’, até Argolas”, disse, sorridente.
Deu tempo de ouvir muita coisa. E, embora tudo seja digno de ser contado, uma história precisa ser narrada. O Bino, foi o Bino quem me contou... Contudo, ainda que eu o chame de Bino, não era bem este o seu nome. Mas, é melhor que fique assim, pois vai que eu fique empolgado, talvez ainda impactado com o encontro com aquele velho, aquele velho que teve o poder de ressuscitar o meu querido avô, e altere alguma coisa da história! Assim, correndo este risco, é melhor que eu preserve a sua identidade, para que não lhe seja atribuído qualquer relato pouco fiel ao que ocorrera.
Ou, ainda, pode ser que eu tenha inventado essa história e esteja, agora, esforçando-me para imprimir-lhe uma autoridade transcendental. Ou ela foi um produto da minha esquizofrenia de cada dia, aquela esquizofrenia terapêutica que nos arrebata – a todos nós! - de uma realidade e nos remete a outra, dando-nos um pouco de sossego e gozo. Ou o nome do autor seja, de fato, Bino. Ou, Benedito, quem sabe? Não importa... Não importa o nome ou se o que contarei aconteceu. E, se não aconteceu, poderia ter acontecido.
Ele tinha 06 filhos, todos negros como o pai.
Por causa de um fato criminoso ocorrido na cidade, sabendo que eram sempre os negros os primeiros suspeitos de cometer tais atos, resolveu ir à delegacia dar explicações e mostrar sua inocência para o Doutor delegado. Todavia, temia ir sozinho, pois vai que o delegado o pusesse na cadeia... Assim, foi ao encontro do seu compadre Bino e o convidou para acompanhá-lo.
O compadre até aceitou ir junto, mas, duvidando que isto seria óbice a uma prisão, e, ainda, temendo que o delegado ao invés de prender um preto prendesse dois, fez sugestão ao Santo: “Compadre Santo, a gente não vai lá só nóis não. O senhor chama os meninos, todos os seis meninos, e leva eles junto com nóis. Vai ver, compadre, que com aquela penca de moleque junto, mesmo que fosse um delegado desgraçado de ruim teria dó de prender o pai deles.”
Assim, concordando, o Santo foi acompanhado de todos os seis filhos e do compadre Bino para falar com a autoridade.
Chegando, foi bem recebido. O Doutor foi logo vendo aquela “penca” de negrinhos, todos muito fortes, mesmo os que ainda pequeninos. Impressionado, a autoridade foi logo perguntando:
— Seu Santo, eu não entendo uma coisa: como é que os meus filhos comem de tudo o que há de melhor lá em casa: carne de primeira, verduras belíssimas, frutas fresquinhas e brilhantes, mas são raquíticos daquele jeito? O que o senhor dá para os seus filhos para que eles fiquem tão vistosos e robustos desse jeito?
— Ah, doutor, é que, na verdade, os seus filhos não comem de primeira nada. Eles comem é de segunda. Os meus, sim, comem o que há de melhor.
“Ih, vai ser preso agora mesmo”, pensou o Bino, que o acompanhava.
O doutor delegado fez cara de espanto. Levantou da cadeira, virou-se para uma janela que dava para a rua principal da cidade, pensou, pôs a mão na cabeça, e...
— Como assim, homem de Deus? Eu não estou dizendo que lá em casa o que entra pra comer é o que há de melhor pra ser comprado? Eu mesmo faço as compras – explicou o doutor.
— E é isso mesmo que eu ouvi e entendi, Doutor delegado. E é por isso que vejo somente uma coisa que o senhor falou que... O senhor me desculpe, Doutor, eu falar isso, mas tem uma coisa errada no que o senhor falou – disse o Santo, com voz meio trêmula.
— E o que está errado, homem?
— É o seguinte, Doutor. Lá na roça... bom, é lá na roça que vem essas coisas que o senhor disse que compra pra sua casa. Eu digo na roça, Doutor, pois eu nunca vi essas coisas sendo criadas na cidade. É da roça que vem a carne de porco que o senhor come; é de lá, também, que vem a abóbora, a batata e o leite. Tudo vem de lá, Doutor – explicou.
— Sim, homem, eu sei disso.
— Pois é, Doutor. Quando a gente vai no chiqueiro tratar dos porcos e vê um leitão caído, que morreu naquela noite, já com uma cor diferente, a gente corre, esquenta a água, pela ele e limpa. Aí, a gente salga ele, se estiver desconfiado do cheiro, e leva para o supermercado e vende por um preço até mais barato... Tem muito porco lá, Doutor, e isso amiúde acontece. E são ordens do patrão. Comer a gente não come, porque a gente gosta de ter sempre um porquinho separado, cevando, pra nossa despesa. E mais, Doutor, aquelas galinhas grandes, bonitas, com coxas grossas e com peito que mais parece de um peru, a gente também não come. Aquelas é pra vender. Não pode pôr a mão não, porque o patrão não gosta. É tudo contadinho. A gente come aquelas que ficam soltas no terreiro, comendo mato, formiga, ciscando o dia todo. Lá um dia ou outro é que a gente dá um pouquinho de milho. Elas demora crescer, mas quando tá grande, ah, Doutor, é uma carne firme, muito gostosa. Essas do terreiro a gente nem precisa pôr aquelas gotas de remédio na água, pois elas bebem ali por perto mesmo, no riachin, água limpinha.
— As verduras, Doutor – continua o Santo -, também o patrão diz que nóis num pode pegar não. Ele diz que tá tudo já encomendado. E olha que nóis cuida delas diretinho, bate sempre um produto nelas pra espantar as pragas. Elas fica muito bonitas, sabe? Mas eu desconfio que se aquele remédio dá uma ardência nos zói da gente, bonitas elas pode até ficar, mas num sei se devia comer. A nossa verdura, nóis têm uma hortinha pertinho do riachin que dá de cumê pra nóis. Nóis colhe tudinho de lá, cada dia... Nem sempre tem de tudo, pois o tempo dá, Doutor, só aquilo que é da época. Mas, o que tem a gente come. Come pouco, mas confia nelas, pois é a gente mesmo que faz o esterco, mexe a terra...
O Doutor delegado, mais ainda espantado, só ouve.
A meninada, maltrapilha, uns descalços, outros com chinelos velhos que davam dó, quietinha, ao redor do Santo, com os olhos arregalados, olhando o Doutor vestido de terno.
O Delegado senta na sua confortável cadeira e, ainda pensativo, com cara de quem descobre que passou muito tempo achando que sabia já demais das coisas da vida, indaga do seu Santo o que ele queria com ele, ali na delegacia.
— É que aquilo que aconteceu semana passada, Doutor, eu já venho aqui pra que o senhor saiba que eu não tenho nada com aquilo. Vindo pra cá, Doutor, eu até ouvi gente falando tudo que é calúnia, dizendo que é coisa de preto... Eu até trusse o cumpadre Bino junto comigo, pro senhor saber que as minhas coisas é tudo direitinho.
— Não se preocupa não, homem de Deus, quem fez aquilo é gente desocupada. Eu sei que o senhor não tem tempo pra bobagens e se ocupa bem de criar seus filhos. Quem duvidar disso, é só olhar pra eles e ver o porte dos meninos.
O Santo, aliviado com o que ouvira, olhou para o seu compadre Bino e sorriu um sorriso tímido, daqueles sorrisos felizes, mas com o cuidado da modéstia. Então, agora se sentindo menos tenso, chama a meninada pra ir embora, pedindo licença ao Doutor delegado. Já na porta, porém, volta-se e se dirige à autoridade.
— Pois é, Doutor delegado, o senhor me desculpe, mas eu acho que o senhor não deveria de aceitar ser enganado não. Se o Doutor quiser, eu mando um dos meninos trazê pro senhor alguma coisinha lá da roça, mas alguma coisinha que a gente possa tirar, com a permissão do patrão. É como eu disse, Doutor, só não posso pegar daquelas plantação de primeira, pois elas é pra vender. Qualquer dia desses, eu mando um franguinho pro senhor. Não é muito grande como esses que o senhor come, mas o doutor vai ver que carne mais gostosa. Aproveito, Doutor, e mando trazer também uns quiabo pra sua senhora fazer uma galinha com eles.
O delegado, já sentado na sua confortável cadeira, agradece o prometido. Diz, entretanto, que não precisa, mais pela preocupação com os parcos recursos do Santo do que pelo desinteresse no presente.
O Santo, todavia, faz-se de desentendido, adivinhando o pensamento do Doutor.
— Deixa, Doutor, que logo logo eu vou matar um capadinho que nóis tá cevando. Aí, eu mando pro senhor um pernil dele... Vai ver o delegado o que é um pernil de porco criado solto: pouca gordura e muita carne, Doutor.
Tendo me contado isso, o Bino percebeu que estava chegando o local onde ficaria. Suspirou aliviado, agradecendo pela carona, pois sem ela ele não conseguiria pegar o ônibus das três da tarde para sua casa.
Parei. Ele abriu a porta. Olhou pra mim, e disse: “Qualquer dia desses o senhor vai lá em casa pra comer um feijão”. E finalizou: “Deus te ajude, pelo favor da carona que o senhor me fez”.
De tudo o que o Bino disse, só esta última fala eu assim corrigiria: “Deus ajude o Bino, pelo presente que ele me deu...”