terça-feira, 3 de maio de 2011

Violência carcerária que não cessa

                 Gilvan Vitorino C. S.
Eu tenho acompanhado o sistema prisional  há algum tempo. Por via oblíqua, a ele fui apresentado no início de 1989... (Corrijo isto: lembrei que já quando eu tinha uns 04 anos de idade – portanto, por volta do ano de 1970 ou 1971 -, na cidade de Baixo Guandu, nós morávamos próximos de uma delegacia de polícia. Mantínhamos, até, contato com os presos através de uma janelinha que dava para a rua. Lembro-me do Adão, um preso que deu a mim e a meus irmãos uma fruta, provavelmente uma fruta que recebera de suas visitas...)

Ora, minha relação com os presos começou diferentemente: recebendo...

Era 89, ainda numa ordem constitucional que debutava, com a novidade do espaço especial dados aos direitos e garantias individuais. Em 89, embora já fora da ditadura e com o nosso art. 5˚ (CF), a tortura ainda incomodava; e continua incomodando. Às vezes é até uma tortura tosca na forma, pouco técnica; mas, tortura!

Já não era e não é uma tortura típica dos anos de chumbo, quando se queria extrair uma verdade do indivíduo, mesmo uma verdade contra as convicções dos indivíduos (ambos, torturador e torturado). Era uma tortura... (é uma tortura) fruto de uma desqualificação de um indivíduo, um indivíduo para quem o sistema prisional foi criado, não pelo que fez (não nos enganemos: o indivíduo do sistema prisional não está lá pelo que fez ou se alegou que fez, mas porque ele é quem é...), mas porque é um pária (Hannah Arendt).

Lá dentro, dentro daquilo que poucos sabem como é, lá, bem lá, mais lá dentro do que o simples interior daqueles altos muros, lá dentro, ninguém sabe exatamente como se passa a vida de um presidiário (nem eu sei, pois já disse que ao sistema presidiário fui apresentado por vias oblíquas!). Porque, seria necessário não somente visitar ou inspecionar o interior de um presídio para saber como é a vida lá dentro. Mesmo alguém que ficasse no seu interior por algum tempo, fazendo alguma pesquisa de campo, careceria de “pertencer” àquele lugar. Só um pária, tendo vivido dentro de um presídio pode saber o que isso significa. Quer dizer, nem mesmo alguém que esteja por lá cumprindo uma pena poderá ter a exata noção do que isso significa se ele não for, ao mesmo tempo, um pária!

Quando se diz que o sistema prisional está falido, que ele é uma avacalhação com a dignidade da pessoa, que ele é um desrespeito aos Direitos Humanos, quer-se dizer, frequentemente, que as condições de vida não são boas, que a comida tem moscas, que os presos não têm acesso ao banho, que eles dormem sobre o chão frio, ou que eles dormem em pé, ou que eles dormem como morcegos – seguros às grades das celas -, ou são surrados pelos carcereiros ou policiais, ou que eles são violentados sexualmente pelos seus colegas, etc. É muito comum indicar essas avacalhações que gritam. É muito comum dar atenção ao indivíduo quando é seu corpo que é humilhado...

Mas, a avacalhação que o sistema prisional impõe ao indivíduo que está preso, mais ainda ao pária preso (porque, repito, lá dentro não há somente párias, embora seja uma instituição construída para os párias...), também é constituída por ofensas bastante silenciosas, pelo menos tão silenciosas que somente um bom ouvido pode tomar conhecimento delas. Lá dentro, o nosso art. 5˚ passa de largo. É como se todos os direitos do indivíduo não fossem direitos daqueles indivíduos. E é isso mesmo, porque os indivíduos lá de dentro são párias!

Ora, na Grécia antiga, como se explicava (numa tentativa de justificação) a presença de escravos? Dizia-se que não eram os escravos que não tinham direitos como os cidadãos, mas que aqueles não eram indivíduos iguais, portanto escravizáveis! Como se explicava a escravidão dos nossos negros? Ora, os negros nem sequer tinham alma, não eram iguais! Como se pôs, com a aprovação de tantas ilustradas mentes, judeus nos campos de concentração? Tirando-lhes o status de gente! Os judeus eram párias!

Voltando: enquanto os judeus... Bom, voltando, mas antes fazendo uma analogia. Antes dos campos de concentração, a segregação dos judeus em bairros próprios não gritava tanto quanto quando eles foram postos em campos de concentração, com toda aquela crueldade que se sabe. Eu não posso afirmar muita coisa sobre isto com muita segurança, mas me parece que a segregação espacial e social que sofriam antes dos campos de concentração (pois o anti-semitismo como ideologia é coisa muito antiga – Hannah Arendt) deveria ter sido rechaçada, mas não foi devidamente. Parece que BERTOLD BRECHT está falando agora mesmo:  
Primeiro levaram os negros. Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Depois agarraram uns desempregados. Mas como tenho meu emprego, também não me importei. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.
Hoje, frequentemente, as pessoas se indignam quando o sangue é vertido nos cárceres: torturas, esquartejamentos, doenças, etc. E tem que se indignar mesmo. Mas, o que quero com esta reflexão é afirmar que o cárcere, lugar dos párias, é lugar que jamais se afastará do desrespeito da dignidade humana. Temos a falsa impressão de que o desrespeito sempre grita alto. Não, o desrespeito sabe ser silencioso... E esse silêncio é muito perigoso.

Senão, vejamos: os presidiários não têm seu direito ao sigilo das correspondências preservado, pois as cartas que entram e saem são violadas, violadas por determinação das direções das unidades prisionais; homens e mulheres são mantidos nos cárceres sem o devido acesso à plena satisfação (ou à máxima satisfação possível) dos anseios da sua sexualidade; enquanto o Ministério da Saúde e algumas entidades fazem campanha para a prática da amamentação, nos presídios as crianças são separadas das suas mães tão logo elas completem 06 meses de idade (mesmo com a CF prescrevendo – art. 5˚, L – que elas permanecerão com seus filhos enquanto durar a amamentação). Ainda, as mães presas são privadas do contato com seus filhos menores porque lhes é imposta uma condição: que transfiram a guarda para uma pessoa para que possam, acompanhadas, adentrar os presídios; enquanto a lei lhes garante a possibilidade de trabalho, os detentos passam horas e mais horas, dias e anos, até décadas, numa ociosidade que pode enlouquecer! Quantos estão lá dentro mesmo depois de cumprida sua pena! Quantos estão lá dentro mesmo ainda sendo inocentes, pois ainda não foram definitivamente condenados; etc. (Oh, quem velará por eles? Quem ouvirá tamanho silêncio?)

A questão prisional não está na ordem do dia dos movimentos sociais e partidos políticos. Somente aqueles movimentos sociais cuja luta seja direta ou indiretamente ligada ao sistema penitenciário têm denunciado a violência do sistema prisional e, ainda,  fazem a reflexão sobre o assunto. E, mesmo assim, não são todos que tratam a matéria com a devida intolerância que ela merece.

Eu falo intolerância, e explico: nós não podemos tolerar nada. Não podemos dizer: “ah, isso é pouco; levando em consideração o que é feito, isso que se diz que é uma avacalhação com o direito do indivíduo não é significativo perante o que acontece em algumas unidades prisionais...”  

Não! Não nos permitamos dizer isso...

Sigamos a exortação de MAIAKOVSKI:
Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.
Quero afirmar com toda a minha força que nem a pior pessoa merece uma violência como a violência do sistema prisional.

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