quarta-feira, 29 de junho de 2011

É assim, mas deveria ser?

Gilvan Vitorino C. S.
É muito comum que a crítica ao sistema prisional seja feita segundo uma opinião, seja individual ou mesmo construída coletivamente.
Mesmo o movimento em defesa dos Direitos Humanos, embora organizado, emite  juízos de valor acerca das condições de cumprimento de pena privativa de liberdade segundo critérios, não aleatórios, mas, que procedem de um arbítrio sem legitimidade.
Explico...
Fiz pesquisa para minha dissertação de mestrado em Ciências Sociais nos relatórios emitidos em inspeções feitas em presídios Brasil afora, buscando relatar a violência do cárcere. Verifiquei os relatórios do CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária -, os relatórios da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, os relatórios do CEDH – Conselho Estadual dos Direitos Humanos – os relatórios da Comissão de Direitos Humanos da OAB-ES e, ainda, os relatórios da Pastoral Carcerária feitos no Espírito Santo.
Causou-me boa impressão ver que, por exemplo, os deputados foram os que mais se interessaram pela violação de correspondências que sofrem os presos. Pois não se vê muita preocupação com esta violência, como se não fosse relevante.
O risco que se corre é entrar num presídio e julgar as condições de encarceramento segundo o que a direção das unidades prisionais dizem que é o correto ou segundo o que a mídia propala.
A superlotação dos presídios é emblemática quanto a isto. Afinal, quantos indivíduos podem ser encarcerados em determinado espaço? Seria uma informação que deveria ser buscada na direção da unidade? Adentrando os presídios e, como acontece frequentemente, reunindo-se com sua direção, dever-se-ia perguntar qual a capacidade da unidade?
Semana passada, estávamos em São Mateus acompanhando a primeira inspeção realizada pelo recentemente criado Conselho da Comunidade daquela Comarca. Foi uma inspeção com caráter pedagógico, para que os conselheiros pudessem trilhar o caminho deles.
Uma diretora nos acompanhou. Ao entrarmos numa cela, foi logo dizendo: “esta cela é para 06 presos”... “Possui 03 beliches”, etc.
Todavia, tentei refletir sobre aquele local com alguns conselheiros que se detiveram naquele espaço por algum instante: “cabem 06 presos aqui?”, indaguei.
Ora, só é possível responder à pergunta acima se for apresentada uma norma que prescreva o espaço mínimo para os presos.
A LEP – Lei de Execução Penal, 7210/84 – prescreve:
Art. 87. A penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado.
[...]
Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular:
a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana;
b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).
[...]

Ao disciplinar especificamente as condições da penitenciária, a Lei 7210/84 prescreve que a área mínima da cela (que deverá ser individual) deverá ser de 6,00m².
E qual deverá ser a área mínima em caso de celas coletivas?
Segundo a LEP,

Art. 85. O estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária determinará o limite máximo de capacidade do estabelecimento, atendendo a sua natureza e peculiaridades.
[...]

De acordo com a Resolução n° 03, do CNPCP, de 23 de setembro de 2005, as celas deverão ter as seguintes dimensões:
a)   Cela Individual:
01 vaga à 6,00m²

b)   Cela coletiva:
02 vagas à 7,00m²
03 vagas à 7,50m²
04 vagas à 8,00m²
05 vagas à 9,00m²
06 vagas à 10,00m²
Assim, a título de exemplo, veja-se o caso do DPJ de Vila Velha – ES. Há relatório informando que em agosto de 2009 havia 300 presos na carceragem deste Departamento de Polícia Judiciária. E, noutro relatório, há a informação de que eram 06 celas de 9,00m² cada. Segundo informação do delegado, ainda no mesmo relatório, a capacidade era de 36 presos. Ora, pelo exposto na Resolução do CNPCP, observa-se o equívoco: se uma cela de 9,00m² comporta 05 presos, aquela carceragem comportava somente 30 presos.
Mesmo sendo uma diferença aparentemente pequena (35 – 30 = 05), vale o exemplo... Mais grave seria essa proporção numa unidade prisional muito grande.
Portanto, fica bastante claro que é preciso denunciar o sistema prisional referenciado no conjunto de regulamentos que há: Leis, CF, Tratados. E não podemos sucumbir à tentação de escolher o que pode ser aceito ou não. Devemos defender todos, absolutamente todos, os direitos dos presos, pois são pessoas com dignidade de sujeito de direitos.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Espíritas e católicos em fraterna comunhão

                        João Baptista Herkenhoff
Não sou espírita. Sou católico. Nasci numa família católica, em Cachoeiro de Itapemirim. Na infância e adolescência respirei um ambiente religioso que não transigia em questões dogmáticas. Só bem adiante é que surgiu João XXIII, o Papa que abriu o diálogo da Igreja Católica com todas as religiões e correntes de opinião.
Vejo na doutrina espírita muita abertura para o próximo, generosidade. Creio que isto é a síntese do Cristianismo. Neste ponto parece-me que podem comungar católicos, espíritas, protestantes e ateus. Incluo seguramente ateus nesta desejada comunhão porque quem ama o próximo, tem paixão pela Justiça, sonha com um mundo de igualdade, esta pessoa vive a essência da Fé porque Fé é vida, e não explicitação verbal. Vejam bem. Eu não desconheço que há aqueles que optam consciente e racionalmente pelo Ateísmo. Respeito esta escolha. Apenas vislumbro a chama da Fé na vida de todo aquele que se consome no amor ao outro, independentemente de uma subjetiva afirmação teísta.
Se nos debruçarmos sobre os diversos municípios do meu Estado (Espírito Santo) para descobrir, em nossas cidades, instituições que se abrem para o próximo, que se condoem de presos e de prostitutas, que buscam encaminhar crianças, que se dedicam ao cuidado de seres humanos marcados por deficits físicos ou mentais, veremos que muitas dessas instituições, ou a maioria delas, são levadas avante por seguidores do Espiritismo. Acredito que o mesmo fato ocorra em outros Estados do Brasil.
Segundo o relato bíblico, no julgamento final, Jesus Cristo não chamará as pessoas para o lado dos escolhidos, segundo um determinado timbre ou rótulo religioso, mas segundo as obras:
“Vinde a mim, benditos de meu Pai, que me deste pão quando tive fome; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vetistes; enfermo e me visitastes; estava preso e viestes a mim”.
Quando fui juiz de Direito, os desembargadores que melhor entenderam meu trabalho e minhas ações eram espíritas. Cito com reverência dois desses desembargadores: Carlos Teixeira de Campos e Mário da Silva Nunes. Foi graças ao apoio deles que consegui resistir.
Uma decisão que proferi libertando uma pobre prostituta, envolvida com drogas, porque ela seria Mãe, tornou-se nacionalmente conhecida em razão da divulgação dessa sentença pela internet, num site espírita.
Transcrevo a seguir um pequeno trecho do decisório.
“É uma dupla liberdade a que concedo: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver.
Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão.
Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão.”
Os espíritas compadeceram-se de Edna e entenderam porque o juiz a libertou, ainda que, naquele momento histórico (1976), fosse a droga considerada, mesmo o simples consumo, um crime gravíssimo. Através de flagrantes de droga foram colhidos pela rede das prisões muitos opositores do regime político então vigente.
João Baptista Herkenhoff, 75 anos, é professor aposentado da UFES e professor, em atividade, na Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha, membro da Academia Espírito-Santense de Letras e da União Brasileira de Escritores. Autor de: “”Filosofia do Direito” e “Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória”, ambos publicados por GZ Editora, Rio de Janeiro, em 2010 e 2009, respectivamente.
É livre a divulgação deste texto por qualquer meio ou veículo.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Ética da atividade empresarial

                                     João Baptista Herkenhoff
Bertolt Brecht, na sua famosa peça “Ópera dos três vinténs”, coloca o dilema: prender o ladrão do banco ou o dono do banco?
Essa frase é um libelo contra o banqueiro porque, à face do banqueiro, Brecht coloca a dúvida: quem é mais ladrão – o ladrão do banco ou o próprio dono do banco?
Todos os bancos, a própria atividade bancária merece o anátema fulminante de Bertolt Brecht?
É possível haver ética na atividade bancária?
Ou ampliando a indagação: as empresas em geral podem ser éticas?
A atividade empresarial, por si mesma, nega a Ética?
As empresas têm como um dos seus objetivos o lucro. O lucro pode ser ético?
Comecemos pela pesquisa etimológica.
Lucro tem origem no latim “lucru”, que significa logro.
Logro quer dizer "artifício para iludir e burlar; trapaça, fraude, cilada".
Neste caso, o lucro é um logro, um artifício para burlar, o lucro é uma trapaça.
Se o lucro é uma trapaça, o objetivo de uma empresa é trapacear.
Através deste encadeamento de frases estamos construindo um silogismo ou um sofisma?
A meu ver, se não fizermos ressalvas, estamos incorrendo num sofisma.
Não me parece que a atividade empresarial, por sua própria natureza, negue a Ética.
Mesmo a atividade bancária, aquela que lida diretamente com o dinheiro, mesmo essa atividade não me soa, antecipadamente e acima de qualquer consideração, uma atividade que contraria a Ética.
Parece-me, não apenas possível, mas absolutamente necessário, que as empresas subordinem-se à Ética.
Pobre país será aquele em que a atividade empresarial estiver descomprometida com a Ética.
Muitas empresas, muitos empresários desconhecem o que seja Ética, não têm o mínimo interesse em que suas atividades orientem-se por uma linha ética.
Mas me parece injusto lançar este juízo de condenação contra todas as empresas.
Se algumas empresas dão as costas para a Ética, muitas outras optam por uma linha oposta: fazem da Ética um mandamento.
Vamos então ao miolo desta página.
Quais são os requisitos para que uma empresa mereça o título de empresa ética?
Como fruto de uma profunda reflexão, que me acompanha de longa data, proponho doze condições que me parecem devam ser exigidas para que uma empresa conquiste o galardão ético:
1 – que a empresa saiba respeitar e valorizar seus empregados, tratando-os com dignidade, justiça, proporcionando a eles oportunidade de crescimento, entendendo que os empregados são colaboradores, e não subordinados e serviçais;
2 – que a empresa saiba valorizar e respeitar seus dirigentes, gerentes, ocupantes de cargos de chefia, confiando e enaltecendo seu esforço;
3 – que as chefias exerçam seu papel democraticamente, com delicadeza, e não de forma autoritária; que os chefes saibam elogiar e estimular os auxiliares; que emitam instruções operacionais claras e de fácil compreensão; que compreendam que o diálogo favorece um ambiente feliz na empresa, fator que contribui até mesmo para maior produtividade; que diretores e chefes entendam que direção e chefia são missões, e não privilégios, pois, em última análise, todos somos credores de consideração e compreensão;
4 – que o empregado, a que se atribui alguma falta, tenha sempre o direito de se explicar e de se defender;
5 – que a empresa crie e mantenha canais de comunicação dos empregados com as chefias, de modo que os empregados possam apresentar postulações, reclamar, sugerir;
6 – que a empresa saiba respeitar o meio ambiente repudiando toda e qualquer agressão ambiental;
7 – que a empresa não sonegue impostos mas, pelo contrário, compreenda que pagar impostos é uma obrigação social, pois só através da coleta dos impostos pode o Estado cumprir seus deveres para com o povo;
8 – que a empresa saiba exigir do Poder Público a utilização correta dos impostos para que o erário sirva ao bem comum;
9 – que a empresa rejeite qualquer forma direta ou indireta de corromper funcionários, agentes de autoridade ou dirigentes políticos com a finalidade de desviá-los de seus deveres para proveito da empresa;
10 – que a empresa respeite a privacidade do empregado, pois a privacidade é sagrada; que jamais um empregado seja repreendido em público e de forma a ser humilhado;
11 – que a empresa respeite os direitos do consumidor, que esteja sempre pronta para atender reclamações decorrentes de mau serviço ou defeitos em mercadorias e que as falhas encontradas sejam prontamente reconhecidas e corrigidas;
12 – que a empresa, como um todo, englobando empresários, dirigentes, trabalhadores, sinta-se parte de alguma coisa que é superior à empresa: a Pátria, a comunhão nacional, o sentimento de que todos fazemos parte de uma sinfonia universal, de uma caminhada da Civilização e da Cultura, na construção de um mundo melhor.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, é professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), membro da Academia Espírito-Santense de Letras e da União Brasileira de Escritores (UBE). Tem dado palestras sobre Ética em todo o território nacional. Autor do livro Ética para um mundo melhor (Rio, Thex Editora).
É livre a divulgação deste texto por qualquer meio ou veículo.

AS GRAVES VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS DO ESPÍRITO SANTO *

Bruno Pereira Nascimento ** 

De acordo com a Lei de Execuções Penais, todo estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade, bem como que o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.

Tal lei determina, ainda, como requisitos básicos da unidade celular, a “salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana”; e “área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados)”.

Nesse mesmo sentido é a resolução nº 14/1994, que estabelece regras mínimas para o tratamento de Presos no Brasil, cuja recomendação, nesse sentido, aprovada na sessão de 26 de abril a 6 de maio de 1994, pelo Comitê Permanente de Prevenção ao Crime e Justiça Penal das Nações Unidas, do qual o Brasil é Membro.

Prescreve a aludida resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que presos pertencentes a categorias diversas devem ser alojados em diferentes estabelecimentos prisionais ou em suas seções, observadas características pessoais tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena a que foi condenado, regime de execução, natureza da prisão e o tratamento específico que lhe corresponda, atendendo ao princípio da individualização da pena.

Estabelece também que:
A) As mulheres cumprirão pena em estabelecimentos próprios;
B) Salvo razões especiais, os presos deverão ser alojados individualmente;
C) O preso disporá de cama individual provida de roupas, mantidas e mudadas correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto;
D) Os locais destinados aos presos deverão satisfazer as exigências de higiene, de acordo com o clima, particularmente no que ser refere à superfície mínima, volume de ar, calefação e ventilação.

Acontece que nos estabelecimentos prisionais do Espírito Santo tais dispositivos legais não passam de letra morta.

De fato.

Consoante demonstrado à saciedade no pedido de intervenção federal feito em março de 2009 pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, junto à Procuradoria Geral da República, bem como no relatório que será apresentado pelas entidades de direitos humanos “Conectas” e “Justiça Global”, perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) no próximo dia 15 de março, o que se verifica é que os estabelecimentos prisionais do Espírito Santo estão sendo palcos de GRAVES VIOLAÇÕES A DIREITOS HUMANOS dos seus custodiados.

Várias denúncias de superlotação, proliferação de doenças contagiosas, insalubridade das unidades celulares, falta de luz, grades quebradas, fugas, etc., evidência de maus-tratos aos indiciados, são constantes nas vidas dos presos.

E o fato, notório, diga-se, é o de que esses “estabelecimentos prisionais” são o retrato fiel das mazelas que grassam o sistema penitenciário capixaba como um todo, reflexo de uma prática absolutamente dissociada do discurso do Governo “Um Novo Espírito Santo” quanto à segurança.

Tais fatos, restaram suficientemente demonstrados para toda a sociedade brasileira através da edição do Jornal Nacional no dia 05 de fevereiro de 2009 e, mais recentemente, na reportagem veiculada no noticiário “Repórter Record” no dia 09 de março do corrente ano.

Soma-se, à alegada superpopulação carcerária dos estabelecimentos prisionais capixabas, o fato da área destinada às celas serem revestidas de placas de aço, de considerável espessura, tornando a citada área um verdadeiro forno, propiciando e facilitando, inclusive, a proliferação de bactérias e, consequentemente, de doenças contagiosas.

Diante deste cenário, cumpre-me estar assaz preocupado, não apenas enquanto Defensor Público, mas também enquanto cidadão espírito-santense, com a garantia do mínimo existencial de pessoas que se encontram à margem da dignidade da pessoa humana, que estão sendo tratados pelo poder público do Espírito Santo pior do que animais.

E QUAL O PORQUÊ DE TAMANHA PREOCUPAÇÃO?
Porque destilar o nosso veneno, fazendo preponderar no cárcere a ira da sociedade, da falta de compaixão com nosso semelhante só gera mais violência, fazendo com que as celas sejam escolas de bandidos, formando PHD’s na criminalidade.

Assim, quando se fala em priorizar a RESSOCIALIZAÇÃO em detrimento da ira, que pelo eufemismo, é mais conhecida como resposta social, não sensação de impunidade, não se está falando em medida de compaixão, mas sim de plena VIABILIDADE.

Destarte, manter um mínimo de dignidade aos detentos das, na dicção do jornalista Elio Gaspari, “Masmorras de Hartung”, além de liberar nossa consciência, é medida de EXTREMA VIABILIDADE, pois, como, Graças a Deus, não há pena de morte no Brasil (salvo no caso de Guerra declarada) e também não há prisão perpétua, um dia, por certo o detento sairá e dará a resposta à sociedade com a mesma medida da pena faticamente imposta.

Bem sabemos que aquele que delinquiu deve cumprir a sua pena e, conforme o caso, ter tolhida a liberdade, o direito de ir e vir. O que não se tolera, entretanto, é suprimir a condição de ser humano, como está ocorrendo nos estabelecimentos prisionais do Espírito Santo.

Estamos diante de uma escola que cultiva a revolta, a insurgência e, se pautada com a mesma régua da punição efetivamente imposta, podemos mensurar as conseqüências.

O professor Alexandre de Moraes, um dos maiores constitucionalistas do país, acerca da dignidade da pessoa humana, ensina que a “dignidade é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas pessoas enquanto seres humanos”.

O douto Procurador de Justiça de Minas Gerais, Rogério Greco, reconhece que o direito à integridade física e moral do preso, elencado no art. 38 do Código Penal é, talvez, o artigo mais desrespeitado do Código Penal, reconhecendo, portanto, vergonhosa ofensa a Direitos Humanos que dimana da corrupção dos dirigentes.

A brilhante Flávia Piovesan advoga no sentido de que o valor da dignidade da pessoa humana, impõe-se como núcleo básico e informador de todo e qualquer ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão de qualquer sistema normativo, mormente o sistema constitucional interno de cada país.

A conclusão lógica de tais ensinamentos é a de que a dignidade do homem é, antes de tudo, a razão de ser do Estado, da Sociedade e do Direito.

Vivemos um momento de recrudescimento da violência, já não mais privilégio dos grandes centros urbanos, em que a sociedade clama por uma resposta rápida dos agentes públicos das mais diversas esferas de poder, com constantes ataques aos mais elementares direitos fundamentais da pessoa humana, como se aí residissem as causas das nossas dores sociais.

Nada mais contraditório e ineficiente: as respostas produzidas até o momento passam pela imposição da força, de penas mais severas e de uma “fúria” legiferante que contribui para o inchaço de um sistema jurídico carente de efetividade, acima de tudo.

As causas, porém, não são objeto de ataque.

O déficit social, a brutal desigualdade social e ausência de oportunidades através da educação, não são enfrentados, pois é mais barato legislar e dar uma satisfação à sociedade.

Mas somente até que a próxima crise ecloda.

Não olvidemos que a imensa maioria da massa carcerária é formada por pessoas pobres.

Neste cenário, não é nada surpreendente a situação de nosso sistema carcerário, habitado por mais de 7.000 (sete mil) indivíduos, sendo que cerca de 1.800 (mil e oitocentos) estão em situação de superlotação.

A sociedade que clama por segurança pública e exige maior rigor no cumprimento das penas, não enxergou, ainda, que o seu foco está errado.

Maior rigor no cumprimento das penas, não deve ser sinônimo de penas mais duras, mas sim efetivo cumprimento da pena imposta, sem redução daqueles homens e mulheres à condição de pessoas destituídas de qualquer dignidade.

Ora, se não há pena de morte ou de caráter perpétuo no país, e se são vedadas as cruéis, resta muito claro que todo aquele que tenha transgredido uma norma e lesado um bem jurídico-penal, em algum momento retornará à sociedade e a pergunta é: como voltará?

Como aceitar, como imaginar possível, que pessoas presas, mormente aquelas que o estão em caráter provisório, possam ser privadas de sua
liberdade e não se lhes garantam o mínimo necessário para a existência humana?

Fere de morte os mais importantes preceitos que conformam o sistema jurídico-penal inaugurado a partir da Constituição Federal de 1988 e a legislação da execução penal, essa restrição à liberdade associada a um tratamento cruel, degradante e desumano.

A defesa de uma existência digna aos presos é, antes e acima de tudo, uma defesa de toda a sociedade, pois é ela a destinatária final desses homens e mulheres que em algum momento serão libertos.

* Texto publicado em 10 de março de 2010.
** Bruno Pereira Nascimento é Defensor Público do Espírito Santo e Presidente da Associação Capixaba dos Defensores Públicos (ACADEP).

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Perdoem-me pela quase iconoclastia

                           Gilvan Vitorino C. S.



Devemos rejeitar a ideia de que a dignidade de uma pessoa seja constituída pela classe social, pela raça, cor da pele, gênero, idade, opção afetiva, etc. Devemos, também, rejeitar a dominação de um indivíduo por outro, de um gênero por outro, de uma cor por outra. E devemos, portanto, rejeitar a realidade de classes sociais... 

Embora haja no mundo oprimidos e opressores, sempre serão, ambos, pessoas humanas, com dignidade de direitos humanos, pelo maravilhoso fato de serem pessoas humanas.

Semana passada, li declaração de um ícone da defesa dos direitos humanos desse nosso Brasil. Muito conhecido dos brasileiros e de muitos outros povos, Leonardo Boff dispensa apresentações. Seus textos – agora mais livres do que nunca – são de leitura imperiosa para quem procura inspiração para a luta por um mundo, não somente melhor, mas, bom para todos.

Boff escreveu um artigo, publicado em A Gazeta, em que tratava do episódio envolvendo o diretor do FMI – Dominique Strauss-Kahn -, que fora apontado como autor de estupro de uma camareira do hotel onde se hospedara. Segundo ele, “para sermos justos, temos que ver este fato a partir do olhar da vítima. Aí dimensionamos seu sofrimento e a humilhação de tantas mulheres no mundo que são sequestradas, violadas e vendidas como escravas do sexo”.

Perfeito o Boff. O sofrimento a que têm sido submetidas mulheres mundo afora precisa ser enfrentado.

Ainda, no mesmo artigo, Leonardo Boff afirma que  

“o que ele [Dominique] fez com Nafissatou Diallo é uma metáfora daquilo que estava fazendo com os países em dificuldades financeiras. Mereceria cadeia não só pela violência sexual contra a camareira, mas muito mais pelo estupro econômico ao povo, que ele articulava a partir do FMI. Estamos desolados” (grifo meu).

Quanto à primeira parte, digo também: perfeito, Boff! Ora, pois o FMI tem sido uma espécie de polícia que milita em defesa dos grandes agiotas mundo afora. E quem age em nome de agiotas não tem escrúpulos, é capaz de fazer o que for preciso para garantir o retorno ampliado do dinheiro emprestado. Agiotagem, portanto, é como se fosse um estupro (agora, estupro por aqui, conforme nosso Código Penal, vitimiza inclusive homens)...

Mas não posso dizer o mesmo quanto a “mereceria cadeia”.

E aqui é que reside o problema, o risco de ser iconoclasta.

Mas, tenho que me manter firme, buscando a coerência, sendo leal ao discurso que tenho construído, sendo leal aos teóricos que me têm ensinado. Mesmo sendo uma afirmação do Boff, preciso discordar dela. Sei que pode parecer muita presunção, mas sei que ler e ouvir de tudo e reter o que é bom é o que posso fazer de melhor.

Noutro artigo, em que condena a morte de Bin Laden, Boff afirma que “não se fez justiça. Praticou-se a vingança, sempre condenável”.

Concordo com ele: mataram-no por vingança.

Mas, parece que Boff identifica justiça com legalidade. Assim, ao dizer que a morte de Bin Laden foi vingança e que o ex diretor do FMI mereceria cadeia, desconsidera as implicações de “cadeia”. Valendo-me das palavras do professor João Baptista Herkenhoff, “a prisão, em si, é uma violência à sombra da lei, um anacronismo em face do estágio atual das mais diversas Ciências Humanas” (Crime: tratamento sem prisão, Vozes, p. 23).

Ainda que fosse legitimo postular a prisão para algum indivíduo, vale mais uma lição de Herkenhoff: “se a prisão de indivíduos condenados pela justiça é sempre uma violência, violência ainda maior é a prisão de quem ainda não foi julgado, é o encarceramento sob o respaldo dos decretos de prisão preventiva” (p. 24).

Segundo Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido:

“a violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores” (Paz e Terra, p. 33).

Anos atrás, lembro de Paulo Freire dizer isto que escreveu, em entrevista em TV, resumidamente: o anseio do oprimido deve ser eliminar a opressão, não tomar o lugar dele (com minhas palavras).

A prisão é uma inexorável violência. E a pena de prisão, que é o aprisionamento legalizado de pessoas, também, ainda que sob o manto legal, é inexorável violência.

Devemos resistir à prisão. Precisamos resistir ao discurso que postula, em nome do enfrentamento da violência, criminalizar condutas e punir os infratores (sempre alguns infratores, criteriosamente selecionados) com penas privativas de liberdade cada vez maiores.

Nós, defensores dos Direitos Humanos, devemos ficar atentos, discursar e agir com coerência, resistindo a postular um direito para alguns e negá-lo a outros. Se não discursarmos e agirmos com coerência, estaremos discursando e fazendo como aqueles que postulam direitos humanos para os que se comportam “adequadamente”.

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]” (preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos), conclamo a todos que tomemos como objetivo derrotar a instituição “pena de prisão”, buscando sua abolição.

E, enquanto a abolição não chega, lutemos para que sua violência seja paulatinamente diminuída.

Sigamos segundo a lição do ilustre professor e histórico defensor dos Direitos Humanos João Baptista Herkenhoff, para quem “a supressão das prisões será possível numa sociedade igualitária, na qual o homem não seja o opressor do próprio homem e onde um conjunto de medidas e pressupostos anime a convivência sadia e solidária entre as pessoas” (p. 24).


  

Direitos Humanos: a responsabilidade dos intelectuais

João Baptista Herkenhoff
Creio que a Cultura tem um compromisso com a defesa dos valores humanistas.  Penso que o escritor, o jornalista, o professor, o jurista, o profissional liberal, direta ou indiretamente, de forma aberta ou de forma sutil, tem, como missão de seu ofício, a afirmação da Ética e a denúncia de toda forma de opressão ou degradação do ser humano.
Sei que o tema é controverso. Vozes respeitáveis opõem-se a este posicionamento. Entretanto, o que expresso aqui é o que minha consciência aponta como sendo o caminho certo.
Os Direitos Humanos constituem uma conquista na caminhada da Humanidade. 
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é documento fundamental nessa construção ideológica.  Mas não foi uma obra instantânea, nem foi produto de um círculo reduzido de pensadores europeus e norte-americanos. Muito pelo contrário, recepcionou um patrimônio de ideias construído, ao longo do tempo, por uma grande multiplicidade de culturas, embora não tenha ouvido plenamente todas as expressões anteriores de Humanismo.
De tudo se conclui que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um texto da mais alta relevância, mas não monopoliza os ideais presentes na História e no grito de Justiça de homens e mulheres, sobretudo daqueles que, por qualquer circunstância, se encontrem numa situação de opressão.
A ideia de Direitos Humanos é fundamental para a vida brasileira de hoje.
Entendemos que sejam princípios cardeais de Direitos Humanos aqueles estatuídos pela Declaração Universal aprovada pela ONU e aqueles que constam de proclamações outras: Carta Universal dos Direitos dos Povos, Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Carta Americana de Direitos e Deveres do Homem, Declaração Islâmica Universal dos Direitos do Homem, Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo.
Do conjunto de documentos colhemos certas ideias que podem ser definidas como Direitos Humanos fundamentais. Dentre outros, arrolamos como Direitos fundamentais da pessoa humana os seguintes:
a) a dignidade de todos os seres humanos, sem exceção;
b) o sentido de igualdade de todas as pessoas e a recusa aos privilégios;
c) a exigência de condições sociais concretas que efetivem a igualdade, de modo que não seja uma promessa vã;
d) a proscrição de todos os preconceitos e exclusões;
e) a proscrição de todas as marginalizações sociais;
f) a proscrição da tortura e a afirmação dos direitos do preso;
g) a repulsa a todas as formas de escravidão;
h) o sentido de Justiça, na sua maior amplitude;
i) o direito de todos à proteção da lei, o direito de asilo, a condenação da prisão arbitrária e o reconhecimento do direito de acesso amplo aos tribunais;
j) o direito à privacidade e à inviolabilidade da correspondência, da honra, da família e da casa ou do lugar onde alguém se abrigue;
k) os valores democráticos;
l) a defesa da vida;
m) a liberdade de consciência, crença, expressão do pensamento, difusão de ideias sem sujeição a censura e todas as demais liberdades;
n) o direito dos povos a relações de Justiça, no campo internacional, com eliminação de todas as formas de opressão e colonialismo, inclusive colonialismo econômico;
o) os direitos das mais diversas minorias, no seio das sociedades globais;
p) o direito à educação e à cultura;
q) a dignidade do trabalhador e a primazia do trabalho como fator criador da riqueza;
r) a paz e a solidariedade internacional;
s) a fraternidade e a tolerância.
Estes são ideais conhecidos e rebatidos.  Mas infelizmente esquecidos.  Por esta razão devem ser relembrados e também partilhados com irmãos próximos ou longínquos, acima das tênues fronteiras confessionais.

João Baptista Herkenhoff, 75 anos, magistrado (aposentado), professor (em atividade) na Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), membro da Academia Espírito-Santense de Letras, palestrante Brasil afora, escritor (quadragésimo segundo livro no prelo). Autor de: Filosofia do Direito (Editora GZ, Rio, 2010).
Homepage: www.jbherkenhoff.com.br 
P. S. – É livre a divulgação deste texto, por qualquer meio ou veículo.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Remição de pena por estudo liberta duplamente


O Senado aprovou o Projeto de Lei 265/06, de autoria do Senador Cristovam Buarque e relatado pelo Senador Antonio Carlos Valadares, que trata da remição da pena para o preso que estuda. A proposta do PL foi aprovada pela Câmara dos Deputados em março deste ano, e agora segue para sanção da presidenta Dilma Roussef.

Este PL foi uma reivindicação da Pastoral Carcerária, e recebeu apoio da Senadora Ana Rita Esgário e dos Deputados Paulo Teixeira, Domingos Dutra, João Campos e Alessandro Molon.  Durante a discussão da matéria, o Senador Pedro Taques afirmou que o PL dá liberdade duplamente ao preso, pois este tem seu tempo de execução de pena remido e ao ter acesso a educação que vai dar trabalho ao ex-detento.

A proposta aprovada no Senado prevê que tanto presos provisórios como condenados que cumprem pena em regime semiaberto, aberto, fechado ou em liberdade condicional podem reduzir um dia de pena para cada 12 horas de frequência escolar em ensino fundamental, médio, profissionalizante, superior ou de requalificação profissional. Os presos que concluírem o ensino fundamental, médio ou superior terão direito ao acréscimo de 1/3 nos dias a serem remidos, exceto para os cursos profissionalizantes e de requalificação profissional. Mas, cometer infração pode levar a perda de parte do benefício.

A remição de pena já está prevista na Lei de Execução Penal (LEP), sendo reduzido um dia de pena para cada três dias de trabalho. O Supremo Tribunal Federal, por meio da Súmula nº 341 também firma o entendimento de que se o apenado frequentar um curso de educação formal pode ter parte da execução da pena em regime aberto ou semiaberto reduzida.  A inovação ocorrida com a aprovação do texto do PL 265/06 pelo Senado é que o benefício será estendido a presos do regime aberto e em liberdade provisória.

A educação é definida pela Constituição como um direito social de todo cidadão e a LEP prevê a reintegração social dos condenados. Com a aprovação deste PL, além da remição da pena, o preso terá a possibilidade de se reintegrar à família e à sociedade com mais qualificação profissional.  

Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN), dentre os 496 mil presos no país apenas cerca de 40 mil estão inseridos em alguma atividade educacional. Além disso, 63% dos detentos brasileiros não completaram o ensino fundamental e muitos deles são analfabetos.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A vassoura e a espingarda

                        Gilvan Vitorino C. S.
Quinta feira, dia 02 último, eu fui chamado para ir à delegacia onde se encontravam os jovens e adolescentes presos. Atendi ao telefonema de uma colega advogada por volta das 22:30h e logo fui ao encontro dos manifestantes e colegas defensores de Direitos Humanos.

Entrei logo para conversar com o delegado. Vi que se tratava não de criminalidade (como em regra acontece principalmente com os pobres) mas, na linha do que fala Vera Malaguti (veja no BLOG “Por um mundo sem prisões”), era mais um caso de criminalização. (Atente o leitor que, portanto, é um caso de manifestação de vontade: alguém que tem alguma autoridade para tanto decide que certa conduta é criminosa!)

Na delegacia, vi abuso flagrante de autoridade, pois conduziram meninos pra lá e pra cá constrangidos por algemas. Senão, veja o que prescreve a Lei 4898/65:

Art. 3º. Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
a)     à liberdade de locomoção;
[...]
i)      à incolumidade física do indivíduo;
[...]

Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
[...]
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;
[...]

E o STF editou Súmula Vinculante que restringe bastante o uso de algemas. Eis o texto:

Súmula Vinculante 11
Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.


O episódio daquele dia, somado à violência verificada em Barra do Riacho, mais o espetáculo grosseiro do BOPE do Rio de Janeiro, me faz pensar que há por aí uma nova valoração política (novos rumos, novos referenciais) que lembra o fascismo. Pois uma marca do fascismo é a forte presença dos militares no poder...  

Por quê?

Ora, tanto aqui como no Rio de Janeiro, não se está diante de velhos gatunos da política. Pode-se discordar dos que governam estes dois estados, mas a história deles não é a mesma daqueles que estiveram ao lado da ditadura e se acostumaram a resolver as coisas com o uso da força policial.

Tanto aqui como lá, o expediente da força policial foi utilizado como primeiro artifício de resolução de conflitos. Então, na verdade, nem foi uma tentativa de resolver conflitos, mas de debelar o conflito. As autoridades foram muito apressadamente aos policiais buscar sua força. Não houve timidez...

O que se esperava de um governo com características populares (ainda guardo a esperança de que seja, ou volte a ser) era que seu governante fosse até as avenidas onde havia as manifestações, fosse ao quartel dos bombeiros (no caso do Rio) e olhasse no rosto daqueles que se manifestavam, enfrentasse o debate, andasse ao lado deles conversando, chamasse os manifestantes para dentro do Palácio, etc, etc.

Não sei se o modo como os jovens daqui se manifestaram nas avenidas foi o correto, não sei se foi uma manifestação sem organização... De qualquer forma, o que houve não me permite ter alguma dúvida de quem apoiar.

Sei que o que houve foi um enfrentamento entre a vassoura e a espingarda. Ora, sempre que eu estiver diante de um enfrentamento desse tipo tomarei as dores da vassoura.  

Não posso chamar o atual governo de fascista. Seria exagerado e injusto de minha parte. Mas, é preciso que a força policial seja a última alternativa. E, quando não houver mais alternativas para a resolução de um conflito (falo de um conflito com amplitude política), mesmo assim, é preciso fazer como o rio no remanso: devagar, sem pressa.

Não se pode dar muito espaço para uma instituição militar: é preciso sempre lembrá-los de que acima do seu uniforme está o Estado de Direito. E há grupamentos militares que foram treinados para odiar: ao verem uma vassoura lembram logo do cano de uma espingarda.  

Democracia e corrupção

                   João Baptista Herkenhoff

Naqueles momentos, que infelizmente são cíclicos na vida brasileira, em que grandes escândalos administrativos e financeiros ocupam o noticiário, seja o noticiário nacional, sejam os noticiários locais, podemos ser tentados a colocar em cheque a validade do sistema democrático.

No entanto, os desvios de conduta, ao que sinto, não existem como consequência da Democracia. O sistema democrático, especialmente a liberdade de imprensa, apenas torna públicos os atos desonestos.

Impõe-se fazer um balanço geral de nosso modelo democrático. Há vícios que estão na própria raiz do sistema. O debate não pode ficar circunscrito aos políticos. A sociedade civil organizada tem de exigir participação efetiva na discussão e presença eficaz nas estruturas de poder.

A quebra das artimanhas da corrupção, a superação dos vícios que desnaturam os fundamentos da Democracia, tudo isso só será alcançado através de intensa mobilização popular.

Num grande esforço nacional pela construção da Democracia creio que um papel relevante cabe à Universidade, vista como instituição que deve estar a serviço do povo. É imperativo que a instância universitária, em comunhão com a sociedade, discuta e proponha um projeto para o país.

Ao discutir o Brasil, a Universidade, ela própria, também tem de ser discutida.

Alterada em algumas de suas bases, a Universidade ficou mais bem equipada para cumprir seu papel político e social? Creio que não.

Nas universidades em geral, criaram-se Centros e Departamentos. Extinguiram-se as Faculdades. As Faculdades tinham alma. Os Departamentos são etéreos.

O curso seriado foi substituído pelo sistema de créditos. Destruiu-se aquele coleguismo que se forjava na convivência, por vários anos, dos integrantes de uma turma. A turma tornava-se uma pessoa moral, o que repercutia, favoravelmente, tanto na personalidade do jovem, quanto na atmosfera social onde essa “pessoa moral” marcava presença.

Acabou-se com a cátedra. É certo que muitos catedráticos, depois da conquista do título, supunham estar dispensados das tarefas didáticas. Penso que esse desvio ético (supor que a cátedra fosse a láurea da preguiça) podia ser corrigido, pela via acadêmica (corte de ponto do professor catedrático faltoso, da mesma forma que se corta o ponto do modesto funcionário da limpeza faltoso). Não vejo que, para coibir o abuso, o caminho devesse ter sido a supressão da cátedra.

Discutir a Universidade e o ensino em geral, discutir a saúde pública, discutir o modelo econômico, discutir a estrutura partidária, discutir o sistema eleitoral, discutir o poder do interesse privado e do dinheiro nas eleições, discutir a Justiça, discutir a intervenção cirúrgica no nepotismo e no afilhadismo, discutir os tribunais de contas que devem prevenir a corrupção para terem o direito de sobreviver, corrigir não as consequências dos males, mas os males na sua origem e na sua força de contaminar o conjunto social – este é o grande desafio.

João Baptista Herkenhoff, 74 anos, Professor pesquisador da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e conferencista. Autor do livro Dilemas de um juiz – a aventura obrigatória. (GZ Editora, Rio de Janeiro).
E-mail: jbherkenhoff@uol.com.br
Homepage: www.jbherkenhoff.com.br