De acordo com a Lei de Execuções Penais, todo estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade, bem como que o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório.
Tal lei determina, ainda, como requisitos básicos da unidade celular, a “salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana”; e “área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados)”.
Nesse mesmo sentido é a resolução nº 14/1994, que estabelece regras mínimas para o tratamento de Presos no Brasil, cuja recomendação, nesse sentido, aprovada na sessão de 26 de abril a 6 de maio de 1994, pelo Comitê Permanente de Prevenção ao Crime e Justiça Penal das Nações Unidas, do qual o Brasil é Membro.
Prescreve a aludida resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que presos pertencentes a categorias diversas devem ser alojados em diferentes estabelecimentos prisionais ou em suas seções, observadas características pessoais tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena a que foi condenado, regime de execução, natureza da prisão e o tratamento específico que lhe corresponda, atendendo ao princípio da individualização da pena.
Estabelece também que:
A) As mulheres cumprirão pena em estabelecimentos próprios;
B) Salvo razões especiais, os presos deverão ser alojados individualmente;
C) O preso disporá de cama individual provida de roupas, mantidas e mudadas correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto;
D) Os locais destinados aos presos deverão satisfazer as exigências de higiene, de acordo com o clima, particularmente no que ser refere à superfície mínima, volume de ar, calefação e ventilação.
Acontece que nos estabelecimentos prisionais do Espírito Santo tais dispositivos legais não passam de letra morta.
De fato.
Consoante demonstrado à saciedade no pedido de intervenção federal feito em março de 2009 pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, junto à Procuradoria Geral da República, bem como no relatório que será apresentado pelas entidades de direitos humanos “Conectas” e “Justiça Global”, perante a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) no próximo dia 15 de março, o que se verifica é que os estabelecimentos prisionais do Espírito Santo estão sendo palcos de GRAVES VIOLAÇÕES A DIREITOS HUMANOS dos seus custodiados.
Várias denúncias de superlotação, proliferação de doenças contagiosas, insalubridade das unidades celulares, falta de luz, grades quebradas, fugas, etc., evidência de maus-tratos aos indiciados, são constantes nas vidas dos presos.
E o fato, notório, diga-se, é o de que esses “estabelecimentos prisionais” são o retrato fiel das mazelas que grassam o sistema penitenciário capixaba como um todo, reflexo de uma prática absolutamente dissociada do discurso do Governo “Um Novo Espírito Santo” quanto à segurança.
Tais fatos, restaram suficientemente demonstrados para toda a sociedade brasileira através da edição do Jornal Nacional no dia 05 de fevereiro de 2009 e, mais recentemente, na reportagem veiculada no noticiário “Repórter Record” no dia 09 de março do corrente ano.
Soma-se, à alegada superpopulação carcerária dos estabelecimentos prisionais capixabas, o fato da área destinada às celas serem revestidas de placas de aço, de considerável espessura, tornando a citada área um verdadeiro forno, propiciando e facilitando, inclusive, a proliferação de bactérias e, consequentemente, de doenças contagiosas.
Diante deste cenário, cumpre-me estar assaz preocupado, não apenas enquanto Defensor Público, mas também enquanto cidadão espírito-santense, com a garantia do mínimo existencial de pessoas que se encontram à margem da dignidade da pessoa humana, que estão sendo tratados pelo poder público do Espírito Santo pior do que animais.
E QUAL O PORQUÊ DE TAMANHA PREOCUPAÇÃO?
Porque destilar o nosso veneno, fazendo preponderar no cárcere a ira da sociedade, da falta de compaixão com nosso semelhante só gera mais violência, fazendo com que as celas sejam escolas de bandidos, formando PHD’s na criminalidade.
Assim, quando se fala em priorizar a RESSOCIALIZAÇÃO em detrimento da ira, que pelo eufemismo, é mais conhecida como resposta social, não sensação de impunidade, não se está falando em medida de compaixão, mas sim de plena VIABILIDADE.
Destarte, manter um mínimo de dignidade aos detentos das, na dicção do jornalista Elio Gaspari, “Masmorras de Hartung”, além de liberar nossa consciência, é medida de EXTREMA VIABILIDADE, pois, como, Graças a Deus, não há pena de morte no Brasil (salvo no caso de Guerra declarada) e também não há prisão perpétua, um dia, por certo o detento sairá e dará a resposta à sociedade com a mesma medida da pena faticamente imposta.
Bem sabemos que aquele que delinquiu deve cumprir a sua pena e, conforme o caso, ter tolhida a liberdade, o direito de ir e vir. O que não se tolera, entretanto, é suprimir a condição de ser humano, como está ocorrendo nos estabelecimentos prisionais do Espírito Santo.
Estamos diante de uma escola que cultiva a revolta, a insurgência e, se pautada com a mesma régua da punição efetivamente imposta, podemos mensurar as conseqüências.
O professor Alexandre de Moraes, um dos maiores constitucionalistas do país, acerca da dignidade da pessoa humana, ensina que a “dignidade é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas pessoas enquanto seres humanos”.
O douto Procurador de Justiça de Minas Gerais, Rogério Greco, reconhece que o direito à integridade física e moral do preso, elencado no art. 38 do Código Penal é, talvez, o artigo mais desrespeitado do Código Penal, reconhecendo, portanto, vergonhosa ofensa a Direitos Humanos que dimana da corrupção dos dirigentes.
A brilhante Flávia Piovesan advoga no sentido de que o valor da dignidade da pessoa humana, impõe-se como núcleo básico e informador de todo e qualquer ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão de qualquer sistema normativo, mormente o sistema constitucional interno de cada país.
A conclusão lógica de tais ensinamentos é a de que a dignidade do homem é, antes de tudo, a razão de ser do Estado, da Sociedade e do Direito.
Vivemos um momento de recrudescimento da violência, já não mais privilégio dos grandes centros urbanos, em que a sociedade clama por uma resposta rápida dos agentes públicos das mais diversas esferas de poder, com constantes ataques aos mais elementares direitos fundamentais da pessoa humana, como se aí residissem as causas das nossas dores sociais.
Nada mais contraditório e ineficiente: as respostas produzidas até o momento passam pela imposição da força, de penas mais severas e de uma “fúria” legiferante que contribui para o inchaço de um sistema jurídico carente de efetividade, acima de tudo.
As causas, porém, não são objeto de ataque.
O déficit social, a brutal desigualdade social e ausência de oportunidades através da educação, não são enfrentados, pois é mais barato legislar e dar uma satisfação à sociedade.
Mas somente até que a próxima crise ecloda.
Não olvidemos que a imensa maioria da massa carcerária é formada por pessoas pobres.
Neste cenário, não é nada surpreendente a situação de nosso sistema carcerário, habitado por mais de 7.000 (sete mil) indivíduos, sendo que cerca de 1.800 (mil e oitocentos) estão em situação de superlotação.
A sociedade que clama por segurança pública e exige maior rigor no cumprimento das penas, não enxergou, ainda, que o seu foco está errado.
Maior rigor no cumprimento das penas, não deve ser sinônimo de penas mais duras, mas sim efetivo cumprimento da pena imposta, sem redução daqueles homens e mulheres à condição de pessoas destituídas de qualquer dignidade.
Ora, se não há pena de morte ou de caráter perpétuo no país, e se são vedadas as cruéis, resta muito claro que todo aquele que tenha transgredido uma norma e lesado um bem jurídico-penal, em algum momento retornará à sociedade e a pergunta é: como voltará?
Como aceitar, como imaginar possível, que pessoas presas, mormente aquelas que o estão em caráter provisório, possam ser privadas de sua
liberdade e não se lhes garantam o mínimo necessário para a existência humana?
Fere de morte os mais importantes preceitos que conformam o sistema jurídico-penal inaugurado a partir da Constituição Federal de 1988 e a legislação da execução penal, essa restrição à liberdade associada a um tratamento cruel, degradante e desumano.
A defesa de uma existência digna aos presos é, antes e acima de tudo, uma defesa de toda a sociedade, pois é ela a destinatária final desses homens e mulheres que em algum momento serão libertos.
* Texto publicado em 10 de março de 2010.
** Bruno Pereira Nascimento é Defensor Público do Espírito Santo e Presidente da Associação Capixaba dos Defensores Públicos (ACADEP).