segunda-feira, 20 de junho de 2011

Perdoem-me pela quase iconoclastia

                           Gilvan Vitorino C. S.



Devemos rejeitar a ideia de que a dignidade de uma pessoa seja constituída pela classe social, pela raça, cor da pele, gênero, idade, opção afetiva, etc. Devemos, também, rejeitar a dominação de um indivíduo por outro, de um gênero por outro, de uma cor por outra. E devemos, portanto, rejeitar a realidade de classes sociais... 

Embora haja no mundo oprimidos e opressores, sempre serão, ambos, pessoas humanas, com dignidade de direitos humanos, pelo maravilhoso fato de serem pessoas humanas.

Semana passada, li declaração de um ícone da defesa dos direitos humanos desse nosso Brasil. Muito conhecido dos brasileiros e de muitos outros povos, Leonardo Boff dispensa apresentações. Seus textos – agora mais livres do que nunca – são de leitura imperiosa para quem procura inspiração para a luta por um mundo, não somente melhor, mas, bom para todos.

Boff escreveu um artigo, publicado em A Gazeta, em que tratava do episódio envolvendo o diretor do FMI – Dominique Strauss-Kahn -, que fora apontado como autor de estupro de uma camareira do hotel onde se hospedara. Segundo ele, “para sermos justos, temos que ver este fato a partir do olhar da vítima. Aí dimensionamos seu sofrimento e a humilhação de tantas mulheres no mundo que são sequestradas, violadas e vendidas como escravas do sexo”.

Perfeito o Boff. O sofrimento a que têm sido submetidas mulheres mundo afora precisa ser enfrentado.

Ainda, no mesmo artigo, Leonardo Boff afirma que  

“o que ele [Dominique] fez com Nafissatou Diallo é uma metáfora daquilo que estava fazendo com os países em dificuldades financeiras. Mereceria cadeia não só pela violência sexual contra a camareira, mas muito mais pelo estupro econômico ao povo, que ele articulava a partir do FMI. Estamos desolados” (grifo meu).

Quanto à primeira parte, digo também: perfeito, Boff! Ora, pois o FMI tem sido uma espécie de polícia que milita em defesa dos grandes agiotas mundo afora. E quem age em nome de agiotas não tem escrúpulos, é capaz de fazer o que for preciso para garantir o retorno ampliado do dinheiro emprestado. Agiotagem, portanto, é como se fosse um estupro (agora, estupro por aqui, conforme nosso Código Penal, vitimiza inclusive homens)...

Mas não posso dizer o mesmo quanto a “mereceria cadeia”.

E aqui é que reside o problema, o risco de ser iconoclasta.

Mas, tenho que me manter firme, buscando a coerência, sendo leal ao discurso que tenho construído, sendo leal aos teóricos que me têm ensinado. Mesmo sendo uma afirmação do Boff, preciso discordar dela. Sei que pode parecer muita presunção, mas sei que ler e ouvir de tudo e reter o que é bom é o que posso fazer de melhor.

Noutro artigo, em que condena a morte de Bin Laden, Boff afirma que “não se fez justiça. Praticou-se a vingança, sempre condenável”.

Concordo com ele: mataram-no por vingança.

Mas, parece que Boff identifica justiça com legalidade. Assim, ao dizer que a morte de Bin Laden foi vingança e que o ex diretor do FMI mereceria cadeia, desconsidera as implicações de “cadeia”. Valendo-me das palavras do professor João Baptista Herkenhoff, “a prisão, em si, é uma violência à sombra da lei, um anacronismo em face do estágio atual das mais diversas Ciências Humanas” (Crime: tratamento sem prisão, Vozes, p. 23).

Ainda que fosse legitimo postular a prisão para algum indivíduo, vale mais uma lição de Herkenhoff: “se a prisão de indivíduos condenados pela justiça é sempre uma violência, violência ainda maior é a prisão de quem ainda não foi julgado, é o encarceramento sob o respaldo dos decretos de prisão preventiva” (p. 24).

Segundo Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido:

“a violência dos opressores, que os faz também desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores” (Paz e Terra, p. 33).

Anos atrás, lembro de Paulo Freire dizer isto que escreveu, em entrevista em TV, resumidamente: o anseio do oprimido deve ser eliminar a opressão, não tomar o lugar dele (com minhas palavras).

A prisão é uma inexorável violência. E a pena de prisão, que é o aprisionamento legalizado de pessoas, também, ainda que sob o manto legal, é inexorável violência.

Devemos resistir à prisão. Precisamos resistir ao discurso que postula, em nome do enfrentamento da violência, criminalizar condutas e punir os infratores (sempre alguns infratores, criteriosamente selecionados) com penas privativas de liberdade cada vez maiores.

Nós, defensores dos Direitos Humanos, devemos ficar atentos, discursar e agir com coerência, resistindo a postular um direito para alguns e negá-lo a outros. Se não discursarmos e agirmos com coerência, estaremos discursando e fazendo como aqueles que postulam direitos humanos para os que se comportam “adequadamente”.

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]” (preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos), conclamo a todos que tomemos como objetivo derrotar a instituição “pena de prisão”, buscando sua abolição.

E, enquanto a abolição não chega, lutemos para que sua violência seja paulatinamente diminuída.

Sigamos segundo a lição do ilustre professor e histórico defensor dos Direitos Humanos João Baptista Herkenhoff, para quem “a supressão das prisões será possível numa sociedade igualitária, na qual o homem não seja o opressor do próprio homem e onde um conjunto de medidas e pressupostos anime a convivência sadia e solidária entre as pessoas” (p. 24).


  

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